Redes Sociais e Saúde Mental, o "inadmirável" mundo novo

O documentário "O Dilema das Redes", dirigido por Jeff Orlowski que estreou na Netflix há poucas semanas, nos apresenta de forma um tanto caricata questões que envolvem o uso de dados de usuários pelos aplicativos e, mais que isso, o uso dos usuários como dados.
Caricata, pois representa os algoritmos inteligentes como três homens, vilões sem nenhum escrúpulo. cujo único propósito é fazer com que o usuário permaneça o maior tempo possível olhando para a tela de seu celular.
No entanto, essa caricatura não deixa de se assemelhar à realidade.
Os depoentes do filme são em sua maioria homens brancos ex-desenvolvedores desses mesmos aplicativos que agora parecem criticar. Todos têm por volta de 35 a 40 anos o que significa que fizeram suas carreiras muito cedo, ingressando como jovens promissores e criativos no Vale do Silício, sede das principais cibercorporações.
Mostram-se arrependidos e ficam patentes suas disfunções emocionais e problemas psíquicos. Um caso bem nítido é o do ex-desenvolvedor do Pinterest que confessa sofrer transtornos do sono e se sente angustiado por seus filhos entrarem nas redes sociais. Visivelmente ele tem compulsão por atividades físicas e um olhar triste e perdido. Demonstra-se arrependido, porém tem dificuldades em se responsabilizar e assumir os erros que cometeu.
O mesmo se dá com todos os outros depoentes. Expressam uma sensação de impotência, como se em algum momento tivessem até percebido que sua criatividade e inteligência estava sendo usada para fins escusos, mas nada puderam fazer. Um deles diz ter tentado alertar a Google sobre as questões éticas envolvidas. Escreveu um memorando e mandou não apenas para seu chefe imediato, mas para diversas outras pessoas. O memorando se espalhou, chegou às mãos dos "manda-chuvas" e houve uma semana de silêncio num compasso de espera. Como nenhuma providência foi tomada e nenhuma reunião foi convocada, as atividades voltaram ao "normal" como se nada tivesse sido dito.
Esse tipo de coisa pode parecer estranha para aqueles de vocês que nunca estiveram no mundo corporativo ou que nunca tentaram apresentar questões importantes às instituições. No entanto é bastante corriqueiro. Em geral tenta-se abafar o caso, pode ser que mandem o funcionário rebelde embora da corporação, mas em geral isso só ocorre depois de algum tempo, para que não fique patente a censura. Porém o silêncio é de longe a arma mais usada. É como a estratégia utilizada por alguns animais que fingem-se de mortos até que o predador desista.
Passei por isto em diversas circunstâncias e instituições, inclusive na Universidade federal do Sul da Bahia onde atuo hoje. Reitores, Pró-reitores, Decanos, Coordenadores, todos se calaram algumas vezes diante de e-mails que mandei apontando questões e incongruências. Claro que o efeito disto é o isolamento total, já que não podem me mandar plantar batatas. O interessante é que após umas duas semanas retomam a discussão do ponto onde haviam parado antes da minha "brusca" intervenção. Nas corporações educacionais privadas em que passei isto era mais fácil de lidar do que aqui, por inacreditável que isto possa parecer. Nelas as vozes dissonantes são mais respeitadas quando se colocam no momento e para a pessoa certa. Muitas vezes fui elogiado por assumir essa posição de "oposição" e por obrigar os gestores a observarem outras variáveis. Viam nisto lealdade. Os doutos sabedores da universidade se sentem, ao contrário, ultrajados por alguém não aceitar suas imposições ideológicas. Talvez esta seja uma característica típica da mediocridade acadêmica brasileira. Triste.
Voltando ao documentário, após essa digressão subjetiva, penso que há algo mais em comum a todos aqueles depoentes. Hoje homens de seus 30 a 40 anos, foram CEOs, líderes, diretores de algumas das maiores corporações e conglomerados da indústria cibernética e informacional da contemporaneidade. Tinham todos muito a perder se tomassem atitudes muito drásticas em relação aos seus questionamentos éticos. Mas será que eles de fato os tinham?
Penso que quando uma questão ética de peso envolve uma atividade à qual estamos intimamente ligados não cabem meios termos. Não é possível conviver com pessoas que não demonstram qualquer escrúpulo ou empatia em situações em que vidas humanas estão em jogo. Será?
Etienne de LaBoetie (1580) escreveu ainda muito jovem (antes da maioridade) seu Discurso sobre a Servidão Voluntária. Um alerta e um manifesto contra as ideias que começavam a se tornar moeda corrente na Europa de seu tempo e que constituem ainda hoje o manual de práticas sociais e políticas.
Não se trata de generalizar e tratar os ideais modernos como ruins no seu todo. Algumas dessas ideologias são tratadas hoje como conquistas, por exemplo a cisão entre política e religião (ainda que haja revisionistas desse ponto). Porém alguns dessas ideologias tornaram a sociedade um lugar bastante desumanizado, ainda que isso seja incongruente já que a sociedade é feita de pessoas.
LaBoetie argumentava que justamente porque a sociedade é feita de pessoas é que não se poderiam aceitar determinadas posturas dessas mesmas pessoas quando elas passavam a agir a contrapelo dos valores caros aos humanos, a saber, a solidariedade, a comiseração, a empatia, a partilha como forma de coesão social. Os valores modernos são avessos a esses, pois preconizam o autointeresse. É da emergência desses valores que surge o que alguns chamam de sistema capitalista. A mola propulsora desse sistema é uma lógica perversa (porque em desacordo com os valores e práticas anteriores) de crença no consumo como capaz de substituir os laços sociais.
Nossa sociedade está totalmente embebida nos valores modernos: ambição, ganancia, autointeresse, lucro. Por mais que professe o contrário nas igrejas, nas propagandas políticas, nas escolas, nas propagandas, tudo isso não passa de discurso hipócrita.
Se existe uma base de sustentação de nossas sociedade contraditória, essa base é a hipocrisia.
As redes sociais não deixam ser um espelho dessas relações hipócritas. A autoimagem é o que conta e a recepção que essa autoimagem tem nos aplicativos traduzida em quantidades de likes, de reações, de emojis e comentários que coleciona.
Esta carência afetiva demonstrada muito claramente em alguns episódios da excelente série Black Mirror, traz consigo um aprofundamento de questões emocionais anteriores e que agora se materializam nas redes.
Neste sentido, qual o grau de certeza que podemos ter de que os outrora garotos e yuppies do vale do silício de fato têm ou tiveram algum drama de consciência ética sobre suas criações?
Mary Shelley tratou disso em seu famoso romance Frankenstein. o Dr. Victor Frankenstein padece desse arrependimento sobre seu ato criador. Para ele a criatura é algo abominável, pois não fala, não filosofa, não se comporta como um homem branco, adulto, letrado, cristão. Sua prole é maldita e deve ser exterminada. Porém não é o que ele faz. Acaba por servir a essa Criatura numa relação ambivalente de paternidade e medo, sendo perseguido por ela aonde fosse. Termina por perceber que seu destino está umbilicalmente ligado ao dela e a atrai para o Polo Norte para que ambos pereçam.
O medo da tecnologia e das possibilidades catastróficas decorrentes de seu uso inescrupuloso é algo que permeia a Modernidade, não à toa. Os dados indicam que esse medo é crescente na sociedade e, principalmente, que nunca tivemos tantos casos de suicídio, escarificação, automutilação, esquizofrenia, paranóia, psicoses e transtornos mentais de diversos tipo, notadamente entre jovens.
Podemos até achar a nossa criatura horrível e grotesca, mas ela é apenas nosso espelho, um reflexo de nossa própria psique.
O Dilema das Redes é um falso dilema ou pelo menos ele não está nas tais redes sociais. Se há algum dilema é entre discurso e prática.
O discurso das escolas trata de cooperativismo e produção coletiva, enquanto a mesma escola só estimula a competição por melhores notas, por corpos mais atléticos, por popularidade, por poder. O discurso das igrejas é o da compaixão, quando na verdade hierarquiza a comunidade e desumaniza aqueles que não comungam da mesma fé. Mesmo dentro das igrejas há disputas por poder e o crescimento político e econômico dentro delas está intimamente ligado ao grau de subserviência em relação à hierarquia estabelecida e aos resultados econômicos obtidos. Na política e na economia é até desnecessário dizer como a pedra de toque de Maquiavel (Parecer ser bom é mais importante do que ser bom) vigora em todas as instâncias e as maquiagens Verdes (no caso do ambientalismo) e da Responsabilidade Social são apenas para dourar a pílula de veneno.
A crise de consciência da qual padecem os Yuppies do Vale do Silício é apenas uma queda na autoimagem, um desconforto pela percepção do mundo hipócrita que viviam e pregavam como salvador da humanidade. Assim como o Dr. Frankenstein, têm uma relação ambivalente com suas Criaturas. Acabam por apenas recomendar cautela e uso comedido das redes sociais, apesar de terem dito alguns minutos antes que não há como controla-las, não há escapatória contra robôs e algoritmos que compreendem nossos desejos melhor que nós mesmos, pois, como já disse Freud, somos comandados pelos nossos desejos, ainda que tenhamos a ilusão de que estamos no controle. Por isso todos eles estão claramente abalados e se sentem incapazes diante da criação. Vi neles o retrato de Victor Frankenstein após seu ato criador numa noite fria de novembro de 17..
Se não cabe um julgamento a esses ex-jovens promissores por suas criações sem critérios éticos (e talvez não caiba mesmo) é porque eles também são frutos de uma sociedade esquizofrênica e hipócrita. Qual é o grau de responsabilidade nisso de cada um de nós?
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