Religião e psicanálise: neurose coletiva da repressão instintual ou miopia da Weltanshauung científica? (Originalmente escrito como monografia do curso de formação em Psicanálise)
Introdução
Acha-se em consonância com o curso do desenvolvimento humano que a coerção externa se torne gradativamente internalizada, pois um agente mental especial, o superego do homem, a assume e a inclui entre seus mandamentos. Toda criança nos apresenta esse processo de transformação; é só por esse meio que ela se torna um ser moral e social. Esse fortalecimento do superego constitui uma vantagem cultural muito preciosa no campo psicológico. Aqueles em que se realizou são transformados de opositores em veículos da civilização. Quanto maior é o seu número numa unidade cultural, mais segura é a sua altura e mais ela pode passar sem medidas externas de coerção. Ora, o grau dessa internalização difere grandemente entre as diversas proibições instintuais. (FREUD, 1974, p. 8)
The cave you fear to enter holds the treasure you seek. (CAMPBELL, J. 1990)
Esse trabalho pretende abordar as questões relativas à religião e religiosidade e a forma como elas são percebidas em diferentes religiões, aproximações mitológicas e na concepção da psicanálise. Trata-se de um ponto crucial nas teorias de Freud e de Jung e o nó górdio que acabou determinando a cisão entre eles. De tal sorte, penso ser uma questão a ser enfrentada, pois não vejo ambas como excludentes, mas complementares e que podem trazer importantes contribuições para a abordagem da religiosidade na clínica psicanalítica.
Em nenhum momento objetiva-se aqui levantar oposição à teoria psicanalítica ou à psicologia analítica junguiana, mas sim apresentar questões relevantes que possam promover aperfeiçoamento no âmbito destas enquanto possibilidades terápicas e de interpretação do sofrimento psíquico.
Geralmente Jung é tomado como místico e esotérico por considerar a religiosidade em si mesma, ou seja, sem questionar sua validade do ponto de vista científico. Isto em função de sua teoria sobre os arquétipos e o inconsciente coletivo, além de uma abordagem mais simbólica, metafórica e interpretativa que repercutiu em seu amigo Joseph Campbell em suas interpretações mitológicas.
Já Freud, assumidamente ateu e para quem a religião é uma ilusão neurótica coletiva, tem uma certa recusa em relação à validação da religiosidade como forma de autoconhecimento. Como se as questões espirituais fossem um empecilho para o andamento da clínica.
Pretendo demonstrar que as duas teorias podem ser complementares e não necessariamente excludentes cabendo ao analista abordar esse tipo de questão com o devido cuidado em sua clínica.
Para tanto, iniciamos discutindo o posicionamento freudiano da psicanálise dentro da Weltanshauungcientífica e as implicações desse posicionamento. Posteriormente discutimos a premissa do surgimento da religião a partir da Teoria da Escolha Racional e a abordagem junguiana do fenômeno religioso. Ao final, confrontamos as bases da ideia de religião proposta por Freud com a questão da moralidade repressora dos instintos.
Não se trata de um trabalho conclusivo sobre o assunto, mas de um apontamento de limitações teóricas.
1. Freud e a Weltanshauung da psicanálise
Uma das questões mais relevantes da psicanalise é conceber o ser humano como algo cindido, faltante, dependente do outro. Somos seres sociais e essa estratégia de sobrevivência adaptativa foi e é extremamente importante para a nossa sobrevivência e crescimento enquanto espécie. Esta cisão deixa raízes profundas na nossa psique e determina uma perpétua busca pelo outro, pela completude e, portanto, por si mesmo. Nesse processo, as projeções de completude se fazem frequentes e manifestam-se em diversas oportunidades por meio da cultura.
Cada sociedade estabeleceu diferentes formas de lidar com essa sensação de incompletude e, em muitos casos, formas bastante conflitantes e opostas.
Percebo que Freud não considerou fortemente essas diferentes nuances e nem tratou como relevantes os relatos etnográficos aos quais teve, com certeza, acesso em sua época.
Note-se o que ele diz logo no início de “O Futuro de uma Ilusão” de 1926:
Em benefício de uma terminologia uniforme, descreveremos como ‘frustração’ o fato de um instinto não poder ser satisfeito, como ‘proibição’ o regulamento pelo qual essa frustração é estabelecida, e como ‘privação’ a condição produzida pela proibição. O primeiro passo consiste em distinguir entre privações que afetam a todos e privações que não afetam a todos, mas apenas a grupos, classes ou mesmo indivíduos isolados. As primeiras são as mais antigas; com as proibições que as estabeleceram, a civilização - quem sabe há quantos milhares de anos? - começou a separar o homem de sua condição animal primordial. Para nossa surpresa, descobrimos que essas privações ainda são operantes e ainda constituem o âmago da hostilidade para com a civilização. Os desejos instintuais que sob elas padecem, nascem de novo com cada criança; há uma classe de pessoas, os neuróticos, que reagem a essas frustrações através de um comportamento associal. Entre esses desejos instintuais encontram-se os do canibalismo, do incesto e da ânsia de matar. Soa estranho colocar lado a lado desejos que todos parecem unânimes em repudiar e desejos sobre os quais existe tão vívida disputa em nossa civilização quanto a sua permissão ou frustração; psicologicamente, porém, é justificável proceder assim. Tampouco, de modo algum é uniforme a atitude da civilização para com esses antigos desejos instintuais. Apenas o canibalismo parece ser universalmente proscrito e - para a opinião não psicanalítica - ter sido completamente dominado. A intensidade dos desejos incestuosos ainda pode ser detectada por detrás da proibição contra eles, e, sob certas condições, o matar ainda é praticado, e, na verdade, ordenado, por nossa civilização. É possível que ainda tenhamos pela frente desenvolvimentos culturais em que a satisfação de outros desejos, inteiramente permissíveis hoje, parecerá tão inaceitável quanto, atualmente, o canibalismo. (FREUD, 1974, p. 7-8)
Em primeiro lugar, Freud estabelece três conceitos basais: Frustração, Proibição e Privação que lhe foram úteis em sua teoria psicanalítica, pois apontam para o próprio desenvolvimento humano. São seus axiomas, que ele escolhe para indutivamente levar seus leitores às conclusões que ele deseja que tenham. Ele o faz para mostrar que o ser humano não segue apenas seus intintos, mas que esses são gradativamente dominados por um processo de repressão de seus impulsos para o crescimento e fortalecimento do ego e do superego.
Esse procedimento desemboca num questionamento de Freud sobre a religião de um modo cientificista, inspirado no iluminismo alemão da segunda metade do século XIX (MACIEL; ROCHA, 2008). Todo o livro, “O Futuro de uma Ilusão” é uma critica bastante mordaz às religiões que são vistas não apenas como ilusão, mas como neurose coletiva.
Ele sustenta, logo no início da citação acima, que as privações a que a civilização foi submetida é o que a constitui enquanto civilização, ou seja, só por meio da frequente proibição e interdito é que a civilização pode se constituir. Se constitui, portanto, privada da satisfação de seus desejos.
Nisto há um principio religioso interessante. Stark e Bainbridge em “Uma Teoria da Religião” (2009) partem de axiomas também. Baseados na teoria da escolha racional, eles propõem que:
Axioma 1- Seres humanos buscam o que percebem ser recompensa e evitam o que percebem ser custos.
Axioma 2- A ação humana é direcionada por um complexo processamento de informação que funciona para identificar problemas e tentar solucioná-los.
Axioma 3- Algumas recompensas desejadas são limitadas, outras sequer existem (no mundo físico).
Introduzem ainda a ideia de “compensadores” como sendo algo que se coloca como proposta no lugar da recompensa que não se pode obter.
Por meio desses princípios racionais e econômicos, desenvolvem uma teoria social da religião de forma dedutiva (a partir dos axiomas se deduzem outros argumentos e derivações) de tal sorte que demonstram que o chamado “mercado religioso” opera com estes compensadores, já que as recompensas são intangíveis. As promessas desses compensadores são quase sempre inverificáveis de veracidade e se colocam a longo prazo ou até mesmo a serem cumpridas apenas em uma outra realidade.
Quando uma criança pede uma bicicleta e o pai propõe que ela deixe seu quarto limpo e não tire nenhuma nota baixa durante um ano, período após o qual ela ganhará seu presente, um compensador foi determinado no lugar da recompensa desejada. Pode-se distinguir compensadores de recompensas por que uma é a coisa desejada, e a outra é a proposta feita para que se ganhe a recompensa. (STARK, 2004, p. 6)
Dessa forma, na base da questão religiosa está uma aceitação tácita da possibilidade de uma recompensa apenas em outra realidade ou mundo, ou seja, uma privação da satisfação do desejo neste mundo. Por isso a emanação da força e do poder é heterodeterminada e a crença nessa outra realidade ou dimensão é, portanto, implícita e infensa a testes.
Isto constitui, segundo o próprio Freud uma Weltanshauung, traduzida por cosmovisão ou visão de mundo em português, essa palavra pode ter outras conotações, como sugere ele.
Suponho que Weltanschauung seja um conceito especificamente alemão, cuja tradução para línguas estrangeiras certamente apresenta dificuldades. Se eu tentar uma definição, minha definição estará fadada a ser incompleta. Em minha opinião, Weltanschauung é uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo. Facilmente se compreenderá que a posse de uma Weltanschauung desse tipo situa-se entre os desejos ideais dos seres humanos. Acreditando-se nela, pode-se sentir segurança na vida, pode-se saber o que se procura alcançar e como se pode lidar com as emoções e interesses próprios da maneira mais apropriada. (FREUD, 1976, p. 106)
Esta forma de ver e organizar o mundo é uma construção cultural e, portanto, obedece regras, convenções e formas de entender o mundo que são socialmente construídas a partir de uma moralidade. Por isto mesmo, o fato da psicanalise surgir dentro do contexto científico, faz com que ela esteja dentro de uma determinada Weltanshauung, com seu comprometimento moral e suas regras.
É por isso que ele diz:
Ademais, marcam-na (a esta Weltanschauung cientifica) características negativas, como o fato de se limitar àquilo que no momento presente é cognocível e de rejeitar completamente determinados elementos que lhe são estranhos. Afirma (esta Weltanschauung) que não há outras fontes de conhecimento do universo além da elaboração intelectual de observações cuidadosamente escolhidas – em outras palavras, o que podemos chamar de pesquisa – e, a par disso, que não existe nenhuma forma de conhecimento derivada da revelação, da intuição ou da adivinhação. (FREUD, 1976, p. 106)
Ao afirmar o paradigma científico como escopo sob o qual se ergue o edifício do conhecimento psicanalítico, Freud decide relegar à religiosidade a uma Weltanshauung da qual não se pode extrair conhecimento verdadeiro, posto que não é científico.
Esse tipo de escolha e argumentação é própria da tentativa de racionalização do mundo feita a partir do iluminismo e não se trata aqui, evidentemente, de desdenhar das postulações de Freud com relação à questão religiosa, mas de ponderar os efeitos de suas escolhas e suas limitações, bem como assinalar o pertencimento da psicanálise a uma epistemologia especifica.
Seus pressupostos são a existência de um inconsciente estrutural, regido pelas leis do processo primário; isto faz com que o aparelho psíquico se configure de forma dividida pela repressão ou pela cisão, o que permite a produção de formações de compromisso que se expressam como sintomas, atos falhos, parapraxias, sonhos, distúrbios da conduta e comportamento; este aparelho se organiza em função do Complexo de Édipo, que – por sua vez – ressignifica retroativamente o trauma narcísico primário; tudo isso se evidenciando e atualizando na transferência . É através desta Weltanchauung que o psicanalista “vai ao cinema”, “lê o jornal” e exerce a clínica. (TELLES, 2020, p. 02)
2. Jung e sua abordagem religiosa
Tendo sido Jung um discípulo de Freud, é claro que ele esteve imbuído da mesma Weltanshauungcientífica. No entanto, me parece que há algo diferente em sua forma de abordar a religiosidade. Se no inicio de sua amizade os interesses eram semelhantes, pois discutiam calorosamente sobre mitologias, arqueologia, inconsciente e psicanalise por horas, com o passar do tempo ocorre um distanciamento e tudo indica que a principal questão entre eles foi o entendimento do fenômeno religioso.
Como vimos, enquanto Freud considerava a religião uma neurose coletiva, ao menos nessa fase de seu pensamento, Jung já enveredava pelo estudo das religiões como uma possibilidade positiva de conhecimento humano. Seus estudos sobre mitologia evoluíram sobremaneira e o ajudaram a desenvolver os conceitos de arquétipo e inconsciente coletivo que, mais tarde, se tornaram basais em sua teoria.
O lançamento do livro “Símbolos e Transformação” em dois volumes em 1911, pode ser considerado um marco no rompimento do relacionamento entre eles. Freud havia começado a escrever “Totem e Tabu” na mesma época e parece estabelecer uma espécie de competição com Jung sobre as origens da religião. Jung ainda não tinha suas teorias totalmente maduras e tentava expor a Freud seus pensamentos, mas este não aceitava, gerando em Jung uma inibição inicial que depois se transforma em afastamento. Enquanto isso, Freud alicerçava sua chave de leitura da religiosidade no Complexo de Édipo, conforme descrito em “Totem e Tabu”, reduzindo a relação entre homem e Deus àquela entre a criança e o pai. Para Freud a fixação do neurótico nos rituais que realiza para si se assemelha àqueles realizados nas cerimonias religiosas. O individuo, segundo ele, desenvolve uma compulsividade à repetição que, se quebrada por algum motivo, gera angustia e ansiedade. Subjacente a isto, ele coloca a questão do incesto como tabu central das comunidades primitivas de humanos, exatamente pela questão edípica.
Isto é relevante na medida em que as teorias junguianas se tornaram mais toleráveis e inclusivas da religiosidade enquanto manifestação da psique não necessariamente doentia. Se Freud aceita a religião como válida apenas na antiguidade, quando os humanos eram “primitivos”, Jung vê na religião uma forma de conhecimento legitimo e que não deveria se extinguir no futuro.
Jung ficou fascinado pelas semelhanças entre diversas religiões pertencentes a culturas muito diferentes e percebeu que haviam estruturas idênticas em suas mitologias. Chamou-as de arquétipos que se constituíram a base para sua teoria do inconsciente coletivo, ou seja, uma estrutura repleta de estampagens que seriam comuns a todos os seres humanos (CAMPBELL, 1990). É assim que ele amplia a noção de complexo, por exemplo, identificando outros tipos de complexos basais que não apenas o de Édipo, na estrutura da psique.
É assim que ele e vários de seus seguidores e interlocutores vão estabelecer muitas conexões entre diversas religiosidades e mitologias, aumentando sobremaneira os conhecimentos sobre elas e estabelecendo formas de análise surpreendentes e prolíficas sobre a religião.
Praticamente todas as obras de Jung perpassam pelo conceito de religião de alguma forma, tal é o grau de importância por ele atribuído ao tema. Muitos teóricos da religião se valeram das ideias e conceitos de Jung para desenvolverem suas teorias nesse campo de conhecimento.
Podemos dizer que Jung (2011) estabelece seu conceito de religião atrelado ao princípio etimológico romano (relegere) enquanto observância criteriosa de cerimônias, práticas e cultos das forças ou “potências: espíritos, demônios, deuses, leis, ideias, ideais, ou qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores “(JUNG, Vol. XI, p. 20). Também numa outra passagem ele diz ser “um equilíbrio entre o eu e o não-eu psíquico, uma religio, ou seja, um levar em conta escrupulosamente a presença das forças inconscientes, que não podemos negligenciar sem correr perigo” (JUNG, Vol. XVI, p. 80). Desta forma, não rompe com a proposta psicanalítica de que a religião seja uma manifestação externa de uma inquietude interna, já que ele não utiliza o termo no sentido agostiniano de religação (religare) entre o homem e Deus.
Também a clínica do método junguiano vai se utilizar das questões religiosas e a forma como o paciente encara tais questões como parte do processo de tratamento, já que o que se busca nessa clínica é a superação das dualidades e das cisões, ou seja a ideia de individuação. A religiosidade é vista a partir das questões simbólicas nesse processo de construção.
Conclusão: o encontro das teorias
Como vimos, Freud pressupõe que a psicanálise encontra-se dentro de uma Weltanshauung científica e que esta difere ou é exatamente oposta à religião. No entanto, a teoria junguiana nasce nessa mesma Weltanshauung freudiana e apenas na questão religiosa se posiciona de forma diferente, no entanto, não necessariamente conflitante, mas complementar.
Penso que buscando estabelecer a psicanálise dentro das ciências da natureza, já que no contexto da ciência do final do século XIX e começo do XX isto fazia muita diferença em termos de aceitação e reconhecimento da solidez de suas contribuições, Freud acaba por não compreender que a Weltanshauungcientifica nada tem de tão diferente daquela da religião, pois ambas procuram trazer paz às inquietudes das mentes humanas. Ainda que por caminhos um tanto diversos, já que em um temos a heterodeterminação e a noção de destino como norma, enquanto no outro é da própria psique humana que emanam todas as suas aflições e sofrimentos, penso que em termos de seus propósitos não sejam assim tão diferentes. Muito se fala das semelhanças entre o papel desempenhado hoje pelos psicanalistas e aquele dos sacerdotes e xamãs.
Imbuído de suas crenças no ateísmo e na ciência como solução das questões humanas, Freud acaba, ele também, fundando uma religião. O cientificismo pode ser visto como um sistema de crenças que tem por base a afirmação da ciência e suas metodologias como base de toda a verdade acerca do mundo. Por isto mesmo, negar outros sistemas de crenças como a religião ou qualquer forma de pensamento que valide esse conteúdo religioso é uma forma corriqueira de ação do racionalismo que esta por base desse pensamento. Até hoje isto não é diferente. O que vemos na academia e no fazer cientifico contemporâneo não deixa de ser uma forma de julgamento e exclusão da ciência sobre outras formas de pensar conhecimento e a própria ciência. A exigência de uma cientificidade de um único tipo, baseada num método especifico que foi criado para uma função especifica (GAFFO, 2015) é uma forma de negação de qualquer outra possibilidade de compreensão do mundo, ou seja, de qualquer outra Weltanshauung. Esse tipo de procedimento no qual se nega a possibilidade de existência ou funcionalidade do outro é também típico das formas religiosas de adoração.
Não podemos e nem devemos, é claro, julgar Freud por sua postura com a religião. Talvez ela tenha sido necessária para que a psicanalise pudesse emergir do caldo cultural em que ele se encontrava, já que vinha de uma família tradicional judia e havia todo um contexto de perseguição à essa forma religiosa durante a maior parte de sua vida. No entanto, me parece que não podemos deixar de notar que os efeitos dessa posição por ele assumida no inicio do século XX deve ser repensada na clínica psicanalítica atual. Muitos dos problemas que chegam até os consultórios de psicólogos e psicanalistas tem um fundo religioso muito forte, seja pela moralidade imposta pela denominação religiosa seguida pelo analisando, seja pela dificuldade de aceitação dessa denominação em compreender as questões psíquicas do sujeito. O analista tem por determinação de seu método a escuta não julgadora, a participação e envolvimento nas questões de foro íntimo do analisando e, por vezes, uma fala impositiva ou uma não aceitação das questões religiosas do analisando pode por tudo a perder nessa relação pela quebra do vínculo que possibilita a transferência.
Para além disso, a postura de Freud me parece muito mais uma dificuldade em perceber outras formas religiosas que não as do ocidente, por exemplo, que dificilmente teriam o Complexo de Édipo como estrutura basal. A mim parece que Freud trata do ocidente e do monoteísmo muito mais do que a religião de maneira geral. A começar da própria ideia de deus que não tem correspondência nas mitologias orientais, da mesma forma as relações entre os deuses criadores e os seres humanos não encontra respaldo no veio monoteísta e as estruturas observadas por Freud em “Totem e Tabu” não são universais, portanto. Os próprios tabus que ele aponta como incontestáveis em qualquer sociedade: incesto, canibalismo e o desejo de matar não parecem valer quando estudamos inúmeras sociedades e mitologias. De certa forma, parece que Freud tenta escapar do judaísmo, mas acaba por dialogar e duelar apenas com ele em certos momentos, como fica claro em uma de suas últimas obras “O Homem Moisés e a Religião Monoteísta” (2014). Nesse trabalho, apresenta-se claramente a necessidade de Freud em dialogar com o judaísmo e sua derivação o cristianismo para mostrar como sua teoria esclarece perfeitamente a neurose coletiva a que estão submetidos os povos ocidentais. Mesmo que para isso recorra a passagens bastante controversas, como o caso da figura de Moisés ser considerado por ele um egípcio e a ideia de que deveriam ter existido dois Moisés e dois Deus (inclusive com nomes diferentes) e que foram unificados em um único Deus e um único líder.
Ainda na mesma obra, me parece paradigmático quando ele diz que uma criança muito nova que tenha presenciado cenas sexuais dos seus pais poderá tentar revive-las com a mãe, mas se for repreendido por ela, pode passar a ver o pai como ameaça. Ele diz que essa criança tende a esquecer esses fatos e que eles retornarão na adolescência e poderão causar sintomas psíquicos. Ele acreditou, influenciado pela leitura de Darwin, que esse mecanismo psíquico seria capaz de explicar o que ocorria nas hordas primitivas de seres humanos estando na origem das religiões totêmicas (p. 119).
Ocorre, no entanto, que nem todas as sociedades humanas, como hoje se sabe, percebem as questões sexuais da mesma forma. Wilhem Reich (1988) afirma em “As Origens da Moral Sexual” de 1931 que:
A miséria sexual na sociedade patriarcal é o resultado da negação e repressão sexuais, que lhe são intrínsecas e provocam a estase sexual, a qual por seu lado, produz as neuroses, as perversões e o crime sexual. Por essa razão, uma sociedade que não tem interesse na repressão sexual deve estar livre da miséria sexual. (REICH, 1988, p. 29)
Mas o que regularia os instintos sexuais nesse caso, senão a moralidade? Pergunta-se Reich. Ele supõe que seja a possibilidade de satisfação dos instintos sexuais e então passa a analisar uma sociedade matriarcal da Melanésia, na qual os indivíduos não são reprimidos sexualmente desde a infância. Nem mesmo há uma proibição de que as crianças vejam o ato sexual de seus pais, havendo apenas um desencorajamento por parte desses para que não os perturbem. Algo que seria impensável na sociedade moderna ocidental. O resultado é que, talvez justamente pela ausência de proibição, não exista entre eles o voyeurismo como perversão. Além disso, os jogos amorosos e brincadeiras sexuais iniciam-se muito cedo entre eles e são práticas completamente aceitas socialmente, não havendo nenhuma forma de repressão dos pais quanto a isso. Ao contrario elas são comentadas por eles em tom jocoso e brincalhão. Encaradas como naturais. É bem verdade que mesmo nessa sociedade existe um certo tabu com o incesto, porém frente a liberdade que as crianças têm do ponto de vista da experimentação sexual, pouco são atraídas para uma sexualidade com membros de sua família.
Encontra-se um desejo de incesto econômica e dinamicamente excessivo onde exista um interesse demasiadamente marcado pelo objecto incestuoso, devido a uma restrição geral da vida instintiva. Isso é valido para todos os demais impulsos instintivos excessivos e explica o facto de o primitivo ser inteiramente consciente da proibição do incesto sem necessitar de reprimir esse desejo, dado que este não sobressai em relação aos outros desejos, desde que eles sejam satisfeitos. (REICH, 1988, p. 33)
Segundo ele, isso explica claramente porque as crianças e adultos da nossa civilização agem de forma diferente em relação ao incesto e, extrapolando, a toda forma de desejo instintual que seja reprimido violentamente sem uma contrapartida de liberação da satisfação de outros desejos compensadores. Mais uma vez, portanto, a necessidade de compensadores é premente quanto mais forte é a repressão aos instintos naturais, já que as recompensas (conforme enunciamos com Stark) se tornam inatingíveis e economicamente hipervalorizadas.
Isto corrobora com a tese freudiana da neurose e poderia ser um caminho para validar sua posição quanto à religião ser uma forma de neurose coletiva, não fosse o fato de que os habitantes da Melanésia não fazem parte da mesma Weltanshauung que nós. Por si, esse exemplo traz consigo uma questão premente que é a seguinte: se a repressão instintual é a única forma de crescimento do Ego e Superego e um de seus efeitos é o surgimento da necessidade da religião como neurose coletiva, como fica o caso da sociedade da Melanésia que não apresenta repressão significativa nas pulsões sexuais infantis, produzindo jovens e adultos sem neuroses ou perversões, mas que ainda assim apresentam religiosidade?
Em outras palavras, não seriam as várias Weltanshauungen possibilidades de relação com o desconhecido que não necessariamente sejam produzidas pela neurose derivada da repressão dos instintos e desejos sexuais?
Joseph Campbell (1990) aponta uma formula kantiana para expressar essa questão. Ela se apresenta da seguinte maneira:
A – B
C – X
A está para B, assim como C está para X, sendo que A, B e C são elementos conhecíveis e X o incognoscível. Ou seja, a relação com o desconhecido reflete as relações humanas. A forma como tratamos uns aos outros e a nós mesmos é o paradigma (ou Weltanshauung) da nossa relação com o cosmo.
Entendo que essa relação com a transcendência esta além das neuroses produzidas pela repressão instintual e entendo transcendência não como divino ou como instância superiora. A transcendência pode ser imanente, como sugere Nietzsche. Independe da crença em alguma força, energia ou divindade. Ela pode estar presente apenas na manifestação de características surgidas a partir da soma das partes, mas que não estavam nelas. Jung chama isso de Sizígia e dá como exemplo o seguinte:
5 + 7 = 12
Cinco e sete não são divisíveis por dois em números inteiros, mas sua soma (12) o é. Essa forma de percepção da transcendência não carece de nenhuma ilusão ou neurose. Apenas manifesta um desejo de continuidade, de transformação. Muitas formas religiosas na atualidade têm apontado para esse tipo de crença.
Se o século XIX, e boa parte do XX, tiveram como característica o elevado número de casos de neuroses, talvez isto tenha profunda relação com a forte repressão sexual e instintual em níveis jamais vistos, sem que houvessem compensadores capazes de garantir uma tolerância diante das dificuldades mundanas. O final do século XX e o início do nosso século XXI claramente marcam uma mudança com relação à predisposição das pessoas em sofrer psiquicamente pela depressão, a ansiedade e seus derivados. Cabe a nós, psicanalistas, analisarmos o porquê dessa nova “epidemia”. Como nossa relação com outros seres humanos tem se tornado adoecida a ponto de causar transtornos frequentes em nossa psique. Talvez uma possibilidade de leitura e interpretação seja observarmos e pensarmos nossa relação com o transcendente.
Quando Freud posiciona a relação do homem com Deus correspondente àquela entre a criança e o pai, o problema talvez não seja exatamente perceber que as relações familiares da sociedade ocidental (hoje globalizada) sejam por demais repressoras e um dos efeitos disto seja precisamente uma relação doentia com esse Deus? Entendo perfeitamente que as condições da época de Freud eram por demais difíceis para sustentar esse tipo de afirmação, no entanto, seu ataque à religião se torna inócuo sem a desconstrução de que as repressões morais sejam algo necessário à constituição do ser humano. Pelo menos da moralidade repressora ocidental.
Entendo que Wilhelm Reich seja um autor controverso que depois se deslocou da psicanálise criando suas próprias teorias, mas o texto que aponto foi escrito à mesma época das produções de Freud e Jung e me parece que sua critica, influenciada pelo marxismo histórico e dialético e as pesquisas de etnógrafos como Morgan, sejam por demais relevantes para que fossem relegadas por Freud e Jung ao seu tempo.
A clínica psicanalítica atual tem de levar essas questões em conta se quiser se oferecer como uma possibilidade de cura para os sofrimentos e distúrbios psíquicos de nosso tempo. Sem cuidar das causas e preocupando-se apenas com os mecanismos, efeitos e sintomas corremos o risco de sermos apenas um paliativo e a reboque, perdermos o pé da Weltanshauung científica, cuja principal premissa é exatamente a investigação das causas. Precisaríamos mesmo dessa camisa de força psíquica conforme proposta por Freud na epigrafe desse trabalho? Ou ela seria uma das geradoras dos problemas e transtornos de que padecemos? Ao abraçarmos cegamente um modelo excludente de ciência que não tolera nenhuma outra forma de pensamento que passe por questões intangíveis às evidencias cientificas ou a seus testes, não estaríamos discriminando outras formas inusitadas de observar e interpretar o mundo?
Referências bibliográficas
CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus. Volume I – Mitologia Primitiva, São Paulo, Palas Athena, 1990.
FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão. Obras Completas, Volume XXI, Editora Imago, 1974.
_____ Totem e Tabu. Obras Completas, Volume XIII, Editora Imago, 1974.
_____ A questão da Weltanschauung. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos, Volume XXII, Editora Imago, 1976.
_____ O homem Moisés e a religião monoteísta. Trad. de Renato Zwick. Porto Alegre: LP&M, 2014.
GAFFO, Leandro. De Ulisses a Frankenstein ou do confronto com a natureza exterior à dominaçao da natureza interior. Sao Paulo, Globus, 2015.
JUNG, Carl Gustav. Obras Completas. Vol. XI e XVI, 4o ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
MACIEL, Karla Daniele de Sá Araújo; ROCHA, Zeferino de Jesus Barbosa. Dois discursos de Freud sobre a religião, Revista Mal Estar e Subjetividade, nº8, Vol. 03, Fortaleza, 2008.
REICH, Wilhelm. As origens da moral sexual. Lisboa, Publicações Don Quixote, 1988.
STARK, Rodney. Trazendo a teoria de volta, REVER - Revista de Estudos da Religião, n.4, p.1-26, 2004.
TELLES, Sergio. Existe uma Weltanshauung (cosmovisão) na Psicanalise?, disponível em: http://sergiotelles.com.br/existe-uma-weltanschauung-cosmovisao-psicanalitica/, 29/05/2020.
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