Black Mirror Episódio Arkangel: o dilema da supermãe.





Muitos episódios da série Black Mirror são impactantes e exploram questões humanas mediadas por tecnologias.

Quando se vê uma produção que se passa no futuro ou no passado, na verdade está se vendo um retrato do presente.

As tecnologias, no caso de Black Mirror são apenas uma representação do presente, ainda que algumas delas ainda não tenham sido desenvolvidas. 

Desde o momento em que um hominídeo, e da mesma forma um chimpanzé, utilizou um graveto para pegar vermes em troncos de árvores mortas, ou usou um fêmur de animal para matar outro animal ou um ser humano, estamos diante de tecnologia.

A vida humana é intrinsecamente ligada às tecnologias que ele desenvolve como estratégia para superar sua incapacidade física e mental de domínio e controle sobre o mundo natural.

 Hoje assisti ao episódio Arkangel com direção de Jodie Foster e escrita por Charlie Brooker da quarta temporada

Marie (Rosemarie Dewitt) está na mesa de operação para realização de uma cesariana. Ela relata não estar sentindo nenhuma dor em função da anestesia. Uma enfermeira lhe ampara e ela fala de sua incapacidade de fazer força para dar a luz à sua filha, Sara (Brenna Harding), que, assim que nasce, torna-se motivo de preocupação de sua mãe, que imagina que ela não sobreviveu.

Porém, Sara nasceu e com uns quatro anos vai fazer um passeio no parquinho do bairro com a mãe e desaparece. O bairro todo se mobiliza e Sara é encontrada a alguns metros de distância dali. 

No entanto, isto cria um desespero incontrolável em sua mãe, que resolve recorrer a uma empresa (Arkangel) que instala um chip no cérebro da menina que permite à mãe saber onde ela está e o que está vendo por meio de um tablet. Além disso, permite que a mãe a proteja de cenas agressivas e violentas como o cachorro que sempre late para elas na rua de sua casa.

O pai de Marie tenta argumentar que antigamente se criavam as crianças para viverem e terem experiências, mas ela retruca dizendo que foi assim que quebrou um braço numa queda. O pai diz: e como está seu braço hoje? Ela diz que bem e mostra o dedo do meio para ele de forma irônica.

Esta suposta proteção se faz comum desfocar da cena, como se os pixels da imagem não ficassem mais definidos e, desta forma, Sara não sabe reconhecer e definir o que está havendo, como um ato de agressão, uma briga ou sangue.

Sara vai crescendo protegida do mundo, mas é tida como uma “esquisita” pelos colegas de escola, por não entender cenas de violência que o garoto Trick (Owen Teague) reproduz num celular.

Por conselho da atendente da Arkangel que implantou o chip em Sara, Marie passa a acrescentar complementos alimentares no shake que ela toma todas as manhãs, para superar uma possível anemia.

Na pré adolescência, Sara tem um episódio de auto mutilação quando quer entender o que é o sangue, já que nunca o viu. Fura o dedo com um lápis e esfrega o sangue no rosto. Sua mãe vê que ela está se mutilando por meio do tablet da Arkangel e vai até seu quarto para impedi-la de continuar. Sara agride a mãe com uma bofetada. Marie decide levar Sara para uma consulta com um psicólogo e este lhe diz que o controle parental proposto pela Arkangel se mostrou perigoso e que a empresa não poderia mais fazê-lo. Marie reconhece que isto causou o episódio violento de Sara e o psicólogo dia que o chip não pode ser retirado, mas que ela poderia inutilizar o tablet.

Marie guarda o tablet no sótão e Sara se vê livre para experimentar o mundo sem o controle da mãe.

Quando ela conta isto para Trick, este lhe fornece todo o material para incursão ao mundo da violência e da pornografia.

Aos 15 anos, Sara reencontra Trick que havia saído da escola e se envolveu com tráfico de drogas. Ele a convida para ir ao seu encontro naquela noite e ela decide com uma amiga mentir para suas mães dizendo que iriam ver o filme Clube dos Cinco na casa de outra amiga.

Marie aproveita para ter mais um encontro amoroso com um antigo cliente seu da fisioterapia.

Sara decide fazer sexo com Trick e age como havia visto as atrizes de filmes pornográficos encenam. Ele duvida que ela nunca tenha feito sexo antes, mas acredita nela e explica que ela não precisa agir daquela forma e que aquilo é uma encenação.

Como Sara demora a retornar, Marie liga para a casa da amiga onde ela deveria estar. Descobre a mentira da filha e pega o tablet novamente e vê que ela está transando com Trick.

Quando a filha chega, ela a trata como se nada tivesse acontecido e nos dias seguintes continua a vigiá-la.

Na noite seguinte ela vê Sara usando cocaína e no dia seguinte vai até a loja em que Trick trabalha e o ameaça dizendo que vai até a polícia se ele voltar a falar com Sara.

Ele não atende mais as ligações e mensagens dela e Marie vai a uma farmácia e compra remédio abortivo que adiciona ao shake matinal de Sara. Ela passa mal na escola e a enfermeira diz a ela que passou mal por causa do remédio abortivo que ela nem sabia que havia tomado.

Sara vai para casa com muita raiva e arruma suas coisas para ir embora. Sua mãe chega e elas discutem. Sara a acusa de continuar espionando sua vida e na discussão ela toma o tablet das mãos de Marie e a ataca violentamente com ele. Ela desmaia e o tablet se quebra. Sara vai embora. Marie recobra a consciência e pega o tablet nas mãos e sai gritando por Sara nas ruas. Na última cena, Sara pega carona com um caminhão.

 

A Mãe Suficiente mente Boa

Mais uma vez, o que chama atenção no episódio não é a tecnologia em si, mas como essa tecnologia contribui para realizar uma fantasia materna de proteção a qualquer custo de seus filhos.

Essa suposta proteção, ainda que venha de uma angústia justificada de insegurança sobre o que acontece com os filhos quando os pais não estão vendo, é na verdade uma forma de controle e de impedir que o filho aprenda o mundo por meio de suas experiências. 

Donald Wood Winnicott, um pediatra, psiquiatra e psicanalista inglês, seguidor de Freud, uma vez respondeu à entrevista de uma jornalista da BBC de Londres, Iza Benzie (MENDES, 2023), que o interrogou a respeito da maternidade, que uma mãe deveria ser suficientemente boa, ou seja, que ela deveria suprir as necessidades básicas da criança como cuidado, carinho e alimento, mas que deveria também falhar e reconhecer e vivenciar suas falhas, corrigindo-as sempre. Portanto, nenhuma idealização de uma mãe perfeita que nunca se engana e cujos filhos são sempre elogiados pelas outras mães. As mães de propaganda de margarina são como o próprio produto que tentam vender, um engodo. Mães as vezes exageram em seus cuidados, por outras gritam e perdem a calma, ou são castradoras ou permissivas demais. A questão aí é compreender isto, aceitar essa condição, buscar alternativas e caminhos, ou seja, responsabilizar-se pelos seus atos como mãe. 

Essa é a diferença entre a culpa e a responsabilidade. A primeira vem da religião cristã e torna-se uma espécie de mácula ou peso do qual não é possível se livrar, a não ser por intercedência divina. Já a responsabilização sobre algo, exige que aquele que se sente responsável aja a respeito. A responsabilidade é um alerta do erro cometido que pede uma reparação. Por isso a psicanálise trabalha a partir da responsabilidade e não da culpa.

Mães suficientemente boas cometem erros, mas buscam repará-los. Lembram-se de si mesmas e de seu autocuidado, pedem ajuda quando necessário pois entendem que a falha e a falta fazem parte do processo dela como mãe e da criança. 

A superproteção pode gerar na criança uma dificuldade de compreensão de que o mundo não gira em torno dela e que há coisas que ela não terá no momento que deseja e/ou não terá nunca. Isto pode ter efeitos bastante deletérios na vida adulta, pois a criança não consegue passar pelo processo de castração (LACAN, 2005) que Freud (1996) chamou de Complexo de Édipo.

 

 

A mãe Marie

Marie é uma mãe solteira que, nota-se desde o início do episódio, sente incompetente para cuidar da filha e tem medo de que ela se afaste de seu campo de visão. O evento do parquinho e o sumiço de Sara, dispara a neurose de Marie que começa a ficar obcecada por controlar a filha para protegê-la. A empresa Arkangel sabe muito bem como lidar com pais desse tipo e oferece um produto irresistível para quem tem um desejo tão aguçado de controle do outro.

Ela deixa sua vida de lado para cuidar de Sara. Somente sai para encontros casuais com um antigo cliente quando Sara também sai para se divertir. Se no início ela era engraçada e vivaz quando reconhece que errou ao implantar o chipem Sara, com o tempo vai ficando recolhida e triste, ao mesmo tempo que aumenta sua obsessão.

Ela não consegue aceitar que erra e, portanto, não consegue promover nenhum tipo de reparação ou de conversa franca com Sara a respeito. Prefere a mentira dela e de Sara do que encarar a verdade.

Esconde da filha o que coloca nos seus shakes matinais, inclusive o remédio abortivo. Prefere isto a uma conversa que ajude Sara a decidir sobre sua vida, pois ela sempre acha que Sara não é capaz de decidir sobre si mesma. O problema é que Marie não está errada em considerar isto, pois Sara não consegue definir o que é bom ou ruim, já que o ruim e estressante foi apagado. A responsável por essa confusão mental de Sara é Marie, sua mãe.

 

A Filha Sara

Por sua vez, Sara tem muita dificuldade em reconhecer o perigo, em saber como agir em situações limítrofes, em reconhecer quando alguém tenta se aproveitar dela ou amá-la e isto é fruto da impossibilidade de experimentar vivências na infância que poderiam demarcar essas situações permitindo que ela pudesse tomar suas próprias decisões e arcar com seus erros.

Tem reações de violência excessiva quando contrariada, inclusive contra si mesma.

Nunca questionou a mãe sobre seu chip e o tablet de controle, embora soubesse deles. Nem mesmo os shakesmatinais forma motivo de interrogação. Ela simplesmente delegava para a mãe suas decisões e cuidados.

O resultado disso é que Sara sente-se insegura o tempo todo, pois desconhece a medida da insegurança por não ter podido vivenciá-la. Dessa forma, todas as suas novas experiências a partir da pré-adolescência são desmedidas e intensas. 

Ela reproduz os orgasmos dos filmes pornográficos por acreditar que é daquela forma que deve agir, quer experimentar drogas, pois nunca pode sequer falar sobre elas, fura-se com o lápis para poder sentir algo verdadeiro. Isto é algo muito recorrente nos adolescentes contemporâneos. Eles foram e são violentamente reprimidos por um amor desmedido de mães, pais, Estados, religiões, escolas. Só lhes resta a rebeldia, quando têm forças para isto, ou a hipocrisia, quando sucumbem à sociedade e continuam a reproduzi-la em seus próprios filhos depois.

Não à toa, no fundo do Oráculo de Delphos, muito visitado por Sócrates, está escrito: Nada em Demasia. Para encontrar a medida é preciso experimentar a desmedida.

 

O papel de um pai

Para Lacan (2005), cabe a essa figura paterna (que, assim como a materna, não tem relação direta com o sexo ou gênero do cuidador e que pode também ser exercida pela mãe), a efetivação da castração do sujeito tem um papel fundamental e determina a interdição do acesso à mãe, ou seja, é quando a criança percebe que a mãe não é dela e que não poderá tê-la, já que ela não é apenas mãe dela, mas também esposa, profissional, amiga etc.

É o que ele chama de Nome-do Pai que permitirá que a criança passe do estágio de Eu Ideal para a de Ideal de Eu, isto é, no Eu ideal a criança se imagina possuidora da mãe e tenta ser tudo que a mãe quer para poder tê-la como sua. Quando há a cisão da castração a criança percebe que não terá a mãe que nunca lhe pertenceu começa a formular um sujeito capaz de ter alguém como a mãe no futuro da vida adulta.

A mãe desenvolve com a criança uma relação de mútua satisfação de desejos. A criança deseja a mãe para si e a mãe deseja a criança como substituto do falo de seu próprio pai (falo para Lacan não é o pênis, mas a sensação de poder) que não pode ter.

Se a mãe permite a entrada do pai nessa cena edípica, a criança será levada a reconhecer que ela não pode ter a mãe para si e que ao invés de um falo, identificado por seu clitóris na primeira fase, encontra um buraco que marca a falta do falo, a vagina. Passa a reconhecer esse falo no pai e deseja ter um filho com ele para que possa também ter falo. Passa a olhar para a mãe como responsável por ela não ter o falo, já que a mãe não deu a ela, pois também não o tem.

Porém se a mãe não permite a entrada desse pai no cenário edípico ou se o permite fracionado ou com descrédito, isto também pode levar a intercorrências no processo de formação do sujeito na criança. O pai deveria demarcar a lei e o que é bom ou ruim, mas como a figura paterna é mediada pela figura materna, o modo como a mãe considera esse pai no triângulo com a vida da criança é muito relevante.

 

Engenharia Reversa

Há um outro episódio de Black Mirror que utiliza um recurso semelhante para turvar a mente de pessoas por meio de implantes cerebrais. Trata-se de Engenharia Reversa da terceira temporada.

Um pelotão do exército é mandado em uma missão para exterminar baratas. Quando chegam à vila onde há a suposta infestação de baratas que devem ser eliminadas a tiros de fuzil, pois são inimigos mortais, invadem as casas atrás delas e o que encontram são humanóides com corpo de seres humanos, mas cujo rosto eles não conseguem enxergar, pois o chip neles implantado faz com que os pixels tenham pouca definição (mesma coisa da Arkangel).

Os soldados, dessa forma, também delegaram o poder de decidir sobre o bem e o mal aos generais que os mandaram em missão para matar pessoas consideradas, por eles, inimigas.

Um exército, assim como um partido político, um Estado ou uma religião não devem decidir pelas pessoas o que é bom ou ruim para elas. Podem aconselhar, podem apontar caminhos para essa definição, podem dar balizas para esse julgamento, mas não podem assumir para si esta tarefa ao pressuporem que as pessoas são incapazes de fazer escolhas. Se elas são ou se sentem incapazes disto, a responsabilidade recai exatamente sobre estas instituições que não conseguiram se livrar de suas obsessões de controle sobre a vida das pessoas.

De tal sorte, alguém que se diz muito patriótico, ou profundamente religioso, ou totalmente dedicado à obediência de ordens pode ter tido dificuldade de constituir-se como sujeito e precisa dessas instituições para diferenciar o bom do ruim.

O recrudescimento dos partidos políticos de extrema direita como os neofascistas não ocorre por acaso. Eles de quando em quando ressurgem e tentam retomar o poder. O que eles prometem? Manter a hipocrisia social com discursos moralistas e repressores para esconder sua fraqueza de caráter por traz de uma promessa de defesa de valores e do bem contra o mal.

Perceba, leitor, que não usei em nenhum momento deste texto a oposição entre bem e mal, apenas entre bom ou ruim. Isto porque o bem e o mal são valores morais, pois dependem de uma decisão social sobre o que é bem e o que é mal. Bom ou ruim dizem respeito ao seu julgamento subjetivo sobre o que lhe afeta. Pense nisso por você mesmo.

 

Referências

FREUD, Sigmund – A dissolução do Complexo de Édipo (1924), Rio de Janeiro, Imago, 1996.

LACAN, Jacques Marie – Os nomes do pai (1963) Rio de Janeiro, Zahar, 2005.

MENDES, Filipe – Mãe Suficientemente Boa: conceito de Winnicott, in Psicanálise Clínica, disponível em www.psicanaliseclinica.com, 23/06/2023.

Comentários

  1. O futuro é Black mirror, inclusive já estamos bebendo um gole deste doce veneno :)

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