Objeto "a" em O Segredo dos Seus Olhos

 


TEMO. Assim se inscreve o detetive Benjamin Sposito (Ricardo Darin) no que diz respeito aos seus desejos. Um perfeito neurótico moderno, que teme desejar, ainda que não saiba fazer outra coisa ou sequer disfarça-lo quando vê sua nova chefe, Irene Hastings (Soledad Villamil).

Ele anota a palavra num papel como se quisesse lembrar para sempre do medo que lhe causa seguir seu desejo.

Nada atemoriza mais um neurótico do que seus desejos e a simples existência deles o encarcera numa masmorra de privações e tentativas de esquecimento. Dessa forma, ainda que não consiga deixar de desejar, posto que isto é impossível, faz com que ele impeça sua realização.

Lacan contribui com a teoria psicanalítica por meio da postulação do que ele chama de Objeto “a”. No seu processo de retorno a Freud e em sua pesquisa sobre a angústia e o vazio que a provoca é que ele formula essa ideia de um objeto causa do desejo que continuamente escapa, posto que é impossível nomeá-lo e, desta forma, resolvê-lo.

O que o cineasta argentino Juan José Campanella traz em O Segredo dos seus Olhos (2009) é a construção de personagens que se constituem por meio de seus desejos, ou seja, o que fazemos todos os dias.

Por trás de uma suposta história policial manifesta-se uma história de desejos e de amor, por fim.

Em flashes de memória, descobrimos que Sposito, um ex-agente público incumbido de investigar a morte de uma linda jovem (Liliana Colotto – Carla Quevedo), brutalmente assassinada. O que o impulsiona é, a um só tempo, a identificação que ele faz da jovem com seu objeto de desejo (sua chefe Irene, também uma bela e jovem mulher) e sua tentativa de entender o vazio criado pela morte de Liliana na vida de seu marido (Ricardo Morales – Pablo Rago). O caminho que utiliza para desvendar a morte da moça é exatamente a leitura do desejo que faz a partir das palavras de Ricardo. Um processo de escuta e interpretação psicanalítica, por essência.

Em meio à ascensão do peronismo argentino (governo de Eva Peron nos anos 70), que fez criar uma espécie de polícia política a partir do recrutamento de policiais corruptos e condenados da justiça, sua investigação põe em xeque a possibilidade de bancar uma nova denúncia contra um outro investigador que se beneficia dessa confusão política e ética para liberar o assassino da jovem (Isidoro Gomes – Javier Godino) que passa a integrar o time da polícia corrupta e que acaba por assassinar também o companheiro de Sposito, Pablo Sandoval (Guillermo Francella).

A relação de Sposito e seu subordinado Sandoval é uma das pérolas do filme. O chefe vive acobertando as fugidas de Sandoval para os bares dos arredores do trabalho e o resgata sempre tentando fazer com que a esposa o aceite. Por sua vez, Sandoval é o único a saber do desejo de Sposito por Irene e é aquele que aponta esse desejo, que o instiga a dar vazão a ele.

O desfecho da investigação que leva à captura de Isidoro num estádio de futebol é a interpretação cuidadosa que Sandoval faz das cartas de Isidoro encontradas na casa de sua mãe, e que constituem a perfeita interpretação lacaniana dos significantes (a cadeia de repetição que criamos e à qual nos submetemos inconscientemente) de Isidoro, inscritos nos nomes e referências presentes nessas cartas. São todos nomes de jogadores de futebol de seu time favorito (o Racing). O que Sandoval formula com o auxílio de seus amigos de boteco é o precioso enunciado: “Un tipo puede cambiar todo em su vida. La cara, la religion, la novia, el dio. Pero non puede cambiar jamás su passion”. O Racing é a paixão de Isidoro, assim como o fora Liliana na adolescência de ambos. A aproximação do contato com o Real (lacanianamente entendido como o inominável, aquilo que não pode ser suportado, ou seja, o vazio da ausência de Liliana que foi morar na capital e se casou com outro) gera uma angústia que leva Isidoro ao crime de assassiná-la.

O que faz com que Sposito permaneça na busca de Isidoro é sua necessidade de entender esse vazio que se apodera de Ricardo, o marido de Liliana, que encontra em uma estação de trem aonde vai todos os dias, aguardando que um dia possa encontrar Isidoro e fazer justiça, já que a justiça pública, não a faz.

O vazio de Ricardo gera a angústia que produz o desejo de vingança. Vinte e cinco anos depois da morte de Liliana, ele continua obcecado com o desejo de vingança. Assim como Sandoval afoga-se com bebida, Irene aceita passivamente o destino de casar-se com quem não ama e ter filhos e Sposito aceita se afastar de Irene para “salvá-la” de uma possível retaliação do policial corrupto. Ou seja, quer física ou psicologicamente, cada personagem da trama tem de se ver às voltas com a realização ou não de seu desejo. Enquanto Isidoro Gomes e Ricardo Morales e Pablo Sandoval o realizam e têm de bancá-los, Irene e Ricardo o cerceiam e vivem vidas tão vazias e angustiantes quanto os outros.



Este vazio, produtor da angústia que produz o desejo é o que Lacan chama de objeto a. Impossível de tamponar e de esconder ele se revê-la nas falas, nos escritos, nos vícios, no olhar. É por meio do olhar que Sposito descobre que Isidoro é o assassino de Liliana. Como ele sabe disso? Todos se perguntam. É porque é o mesmo olhar com que ele, Sposito, olha para Irene. O olhar do desejo.

Somente após terminar de escrever seu “romance”, que nada mais é que a narrativa e interpretação de sua vida, Sposito pode olhar para o interdito ao seu desejo e reconfigurá-lo, inscrevendo a letra A no grafo TEMO, tornando-o TEAMO. Dessa forma, aceita os riscos de realizar seu desejo e procura Irene para finalmente dizer o que levou 25 anos para elaborar.



A mesma letra “a” que não funcionava na máquina de escrever de Sposito (que depois é dada ao juiz, seu superior), a mesma letra “a” que assinala a falta que todos nós sentimos e que tanto nos angustia produzindo desejos. O fato é que, seja dando vazão total ou tentando encarcerar nossos desejos, não estamos a lidar com eles de maneira a produzir saúde mental e física. Agindo assim, padecemos e somos algozes de nós mesmos.

Cabe a nós percebermos se queremos levar 25 anos ou não para deixar de fugir dessa proximidade do Real.

 

Referências

CAMPANELLA, Juan José – O Segredo de Seus Olhos, Buenos Aires, 2009.

SOBRINHO, Marcelo – Crítica – O Segredo dos Seus Olhos, Plano Critico, disponível em: https://www.planocritico.com/critica-o-segredo-dos-seus-olhos/, 2017.

VIOLA, Daniela Teixeira Dutra; VORCARO, Ângela Maria Resende - A formulação do objeto a a partir da teorização lacaniana acerca da angústia, in Revista Mal-Estar Subjetividade vol.9 no.3 Fortaleza set. 2009, disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482009000300006

 

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