Pleased to meet you! Hope you guess my name: desejo e felicidade na série de TV Lúcifer.

 


 

Hoje tive um sonho muito nítido.

Eu ia a uma espécie de show de rock. tinha muita gente, todos sem máscaras. Há umas semanas atrás, num outro sonho, estava também numa multidão sem máscaras e isso me incomodava muito, nas não desta vez. Meio que na entrada do show eu encontrava Tom Ellis, o ator que faz o papel de Lúcifer Morningstar na série Lúcifer da Netflix (isso é um resto diurno, pois estou terminando de assistir a última temporada). Nos abraçamos e conversamos bastante. Ele não tinha o mesmo rosto do ator. Era loiro com cabelos muito curtos, quase careca e de olhos azuis muito vívidos. Lembro de dizer a ele que eu tenho um amigo galês (Tom Ellis também é do País de Gales). Ele me perguntou quem era. Eu disse que era Dan Baron Cohen, meu amigo escritor que mora no Pará. Ele me disse numa exclamação efusiva: Você é amigo de Dan Baron Cohen!

Fim desta parte.

Na outra parte, estou dentro do show e encontro Ian Gillan (vocalista do Deep Purple). Ele estava com a aparência que tem hoje. Grisalho, de cabelos curtos (isso também é resto diurno, pois vi uma foto dele numa reportagem essa semana sobre o lançamento de um disco novo do Purple). A questão é que Gillan era imenso (uns dois metros e meio). Eu o abraçava pela cintura. Ficamos longo tempo abraçados. Foi aconchegante, assim como com Lúcifer. Conversamos sobre algo que não me lembro e assim acabou o sonho.

 

 

 

Simpatia pelo Diabo

 

Por gentileza me permita que eu me apresente

Sou um homem de fortuna e requinte

Estou por aí já faz alguns anos

Roubei as almas e a fé de muitos homens

E eu estava por perto quando Jesus Cristo

Teve seu momento de dúvida e dor

Fiz a maldita questão de garantir que Pilatos

Lavasse suas mãos e selasse seu destino

 

Prazer em lhe conhecer

Espero que adivinhe o meu nome

Mas o que lhes intrigam

É a natureza do meu jogo

 

Eu aguardei em São Petersburgo

Quando percebi que era hora para mudanças

Matei o Czar e seus ministros

Anastácia gritou em vão

 

Rodei com um tanque

Usei a patente de general

Quando a Blitzkrieg* urgiu

E os corpos apodreciam

 

Prazer em lhe conhecer

Espero que adivinhe o meu nome

Mas o que lhe intrigam

É a natureza do meu jogo

 

Assisti com orgulho

Enquanto seus reis e rainhas

Lutaram por dez décadas

Pelos deuses que eles criaram

 

Gritei bem alto

"Quem matou os Kennedys? "

Quando afinal de contas

Foi apenas você e eu

 

Permita-me por gentileza me apresentar

Sou um homem de fortuna e requinte

Deixei armadilhas para ministreis

Que morreram antes de chegarem a Bombaim

 

Prazer em lhe conhecer

Espero que adivinhem o meu nome, oh yeah

Mas o que lhes intrigam

É a natureza do meu jogo

 

Prazer em lhe conhecer

Espero que adivinhem o meu nome, oh yeah

Mas o que lhes confunde

É a natureza do meu jogo

 

Assim como todo policial é um criminoso

E todos os pecadores Santos

Como cara é coroa

Basta me chamar de Lúcifer

Pois estou precisando de alguma restrição

 

Então se me conhecer

Tenha alguma delicadeza

Tenha a simpatia, e algum requinte

Use toda sua educação bem aprendida

Ou deitarei sua alma para apodrecer

 

Prazer em lhe conhecer

Espero que adivinhem o meu nome, oh yeah

Mas o que lhes intrigam

É a natureza do meu jogo

 

Woo, quem

Oh yeah, se abaixe

Oh yeah

Oh yeah!

 

Diga-me baby, qual é o meu nome

Diga-me doçura, qual é o meu nome

Diga-me baby, qual é o meu nome

Lhe digo uma vez, é sua culpa

 

Oh, quem

woo, woo

Woo, quem

Woo, woo

Woo, who, quem

Woo, who, quem

Oh, yeah

 

Qual é o meu nome

Diga-me, baby, qual é o meu nome

Diga-me, doçura, qual é o meu nome

Sympathy For The Devil

 

Please allow me to introduce myself

I'm a man of wealth and taste

I've been around for a long, long years

Stole many a man's soul and faith

 

And I was 'round when Jesus Christ

Had his moment of doubt and pain

Made damn sure that Pilate

Washed his hands and sealed his fate

 

Pleased to meet you

Hope you guess my name

But what's puzzling you

Is the nature of my game

 

I stuck around St. Petersburg

When I saw it was a time for a change

Killed the czar and his ministers

Anastasia screamed in vain

 

I rode a tank

Held a general's rank

When the Blitzkrieg raged

And the bodies stank

 

Pleased to meet you

Hope you guess my name, oh yeah

Ah, what's puzzling you

Is the nature of my game, oh yeah

 

I watched with glee

While your kings and queens

Fought for ten decades

For the gods they made

 

I shouted out,

"Who killed the Kennedys?"

When after all

It was you and me

 

Let me please introduce myself

I'm a man of wealth and taste

And I laid traps for troubadours

Who get killed before they reached Bombay

 

 

Pleased to meet you

Hope you guessed my name, oh yeah

But what's puzzling you

Is the nature of my game, oh yeah, get down, baby

 

Pleased to meet you

Hope you guessed my name, oh yeah

But what's confusing you

Is just the nature of my game

 

Just as every cop is a criminal

And all the sinners saints

As heads is tails

Just call me Lucifer

'Cause I'm in need of some restraint

 

So if you meet me

Have some courtesy

Have some sympathy, and some taste

Use all your well-learned politesse

Or I'll lay your soul to waste, oh yeah

 

Pleased to meet you

Hope you guessed my name, oh yeah

But what's puzzling you

Is the nature of my game, um mean it, get down

 

Woo, who

Oh yeah, get on down

Oh yeah

Oh yeah!

 

Tell me baby, what's my name

Tell me honey, can ya guess my name

Tell me baby, what's my name

I tell you one time, you're to blame

 

Oh, who

woo, woo

Woo, who

Woo, woo

Woo, who, who

Woo, who, who

Oh, yeah

 

What's my name

Tell me, baby, what's my name

Tell me, sweetie, what's my name

 

 

 

Análise preliminar.

Em que pese o fato de ser um sonho permeado por muito resto diurno, há um fato que só associei numa elaboração depois de acordar, quando cozinhava o almoço. Ian Gillan, além de vocalista do Purple e dono da voz masculina que eu mais admiro, foi também escolhido para o elenco da Ópera Rock Jesus Christ Superstar em sua primeira versão, em 1970, no papel de Jesus Cristo. Ouço esse disco constantemente e ele traz uma ideia de Jesus muito diferente das narrativas religiosas mais ortodoxas. Mais humano e passível de sofrimento. Seu sofrimento está diretamente ligado a uma sensação de impotência, de impossibilidade de alcançar seus objetivos em função da não compreensão das pessoas sobre esses objetivos e os caminhos para atingi-los. O ponto alto da ópera é seu canto de lamento no Jardim das Oliveiras, o Gethsemani, no qual ele pede ao pai que o leve de uma vez antes que ele se arrependa do que fez. Há, portanto, uma dúvida pairando sobre ele e que também gera sofrimento. A dúvida se refere a ele talvez não conseguir cumprir sua missão.

 

Gethsemane (I Only Want To Say)

 Jesus Christ Superstar

 

I only want to say

If there is a way

Take this cup away from me

For I don't want to taste its poison

Feel it burn me

I have changed

I'm not as sure

As when we started

 

Then, I was inspired

Now, I'm sad and tired

Listen, surely I've exceeded expectations

Tried for three years, seems like thirty

Could you ask as much from any other man?

 

But if I die

See the saga through

And do the things you ask of me

Let them hate me, hit me

Hurt me, nail me to their tree

 

I'd want to know, I'd want to know, My God

I'd want to know, I'd want to know, My God

I'd want to see, I'd want to see, My God

I'd want to see, I'd want to see, My God

 

Why I should die

Would I be more noticed than I ever was before?

Would the things I've said and done matter any more?

 

I'd have to know, I'd have to know, my Lord

I'd have to know, I'd have to know, my Lord

I'd have to see, I'd have to see, my Lord

I'd have to see, I'd have to see, my Lord

If I die what will be my reward?

If I die what will be my reward?

I'd have to know, I'd have to know, my Lord

I'd have to know, I'd have to know, my Lord

 

 

 

 

Why should I die?

Oh, why should I die?

Can you show me now that I would not be killed in vain?

Show me just a little of your omnipresent brain

Show me there's a reason for your wanting me to die

You're far to keen on where and how, but not so hot on why

 

 

Alright, I'll die!

Just watch me die!

See how I die!

 

Then I was inspired

Now, I'm sad and tired

After all, I've tried for three years, seems like ninety

Why then am I scared to finish what I started

What you started - I didn't start it

 

God, thy will is hard

But you hold every card

I will drink your cup of poison

Nail me to your cross and break me

Bleed me, beat me

Kill me, take me, now!

Before I change my mind!

 

(Tim Rice; Andrew Lloyd Webber, 1970)

 

Gethsemane (Eu apenas queria dizer)

Jesus Cristo Superstar

 

Eu apenas queria dizer,

Se há alguma maneira

Afaste de mim este cálice

Pois eu não quero saborear seu veneno

Senti-lo me queimar

Eu mudei.

Não estou tão certo, como quando comecei.

 

Então, eu estava inspirado.

Agora, estou triste e cansado.

Escuta! Certamente excedi as expectativas

Tentei por três anos, parece-me trinta.

Poderias pedir tanto de qualquer outro homem?

 

Mas se eu morrer

Ver a saga desenrolar

E fazer as coisas que você pede de mim

Deixa-los me odiar, me bater, me ferir,

Pregar-me numa arvore

Eu gostaria de saber, eu gostaria saber, meu Deus

Eu gostaria de ver, eu gostaria de ver, meu Deus

Porque eu devo morrer.

Seria eu mais notado do que jamais fui antes?

Seriam as coisas que eu fiz e falei ainda de alguma importância?

Eu preciso saber, eu preciso saber, meu Senhor

Eu preciso saber, eu preciso saber, meu Senhor

Eu precisaria ver, eu precisaria ver, meu Senhor

Eu precisaria ver, eu precisaria ver, meu Senhor

Se eu morrer, qual será minha recompensa?

Se eu morrer, qual será minha recompensa?

Eu precisaria saber, eu precisaria saber, meu Senhor

Eu precisaria saber, eu precisaria saber, meu Senhor

 

Por que preciso morrer?

Podes me mostrar agora

Que não seria morto em vão?

Mostre-me só um pouco de sua mente onipresente

Mostre-me que há uma razão por quereres que eu morra

Você está longe de se interessar por onde e como

Mas não sabe o porquê

 

Está bem! Eu morrerei!? Oh!

Apenas assista eu morrer!

Veja como eu morro!

 

Então, eu estava inspirado

Agora, estou triste e cansado

Afinal, tentei por três anos

Parece-me noventa.

Porque então estou com medo de terminar, o que eu comecei...

O que você começou. Eu não comecei isso!

 

Deus! Vosso desejo é difícil

Mas tu seguras todas as cartas

Eu beberei seu cálice de veneno!

Me pregue em sua cruz e me dilacere!

Me sangre, me espanque, me mate!

Leve-me agora, antes que eu mude de ideia.

 


 

Lúcifer, por sua vez, traz um diabo egóico e vaidoso que também sofre por se sentir manipulado pelo seu pai todo o tempo. Uma questão tipicamente humana, portanto. Sua grande ferramenta é a capacidade de perceber e fazer extravasar os desejos das pessoas que encontra. No entanto, é profundamente incapaz de reconhecer e dar vazão a seus próprios desejos. Embora seja evidente seu amor pela detetive Chloé Decker, ele não consegue de nenhuma forma declará-lo a ela e sabota constantemente sua possibilidade de realização, adiando diuturnamente a satisfação de seus desejos e gerando, portanto, mais sofrimento. Aponta em seu pai o egoísmo e a negligência para com ele e o resto de sua prole, mas não deixa de cometer o mesmo erro, por exemplo com relação a Mazikeen e ao policial Daniel Espinoza (ex-marido da detetive Decker), tratando-os com muito desdém e não se importando com seus sentimentos e desejos. A própria Decker é inúmeras vezes negligenciada por ele, decepcionando-se.
O fato do criador da série de tv colocar a personagem da Dra. Linda, uma psicanalista que acaba eventualmente por ser a conselheira e analista de todos os outros personagens chama a atenção e a ininterrupta análise de Lúcifer é um aspecto interessante do enredo. Aos poucos Lúcifer começa a perceber sua personalidade egóica e, portanto, nada empática, mas também outros aspectos começam a se tornar aparentes. Ele demora um longo tempo a perceber que sua vulnerabilidade quando está próximo da detetive Chloé (ele se torna mortal perto dela), não é algo criado pelo seu pai para manipula-lo (seu sofrimento preferido), mas algo que ele produz em si mesmo pela entrega que ama-la representa. Claramente isso é fruto da dificuldade de percepção de si mesmo e de sua própria subjetividade. Apesar de sua necessidade de compreender seus mecanismos psíquicos, o que o leva a fazer análise, ele apresenta um estágio de negação e resistência muito exacerbado. 

É curioso que a versão de inferno apresentada na série seja baseada numa ideia de sofrimento autoinfligido, ou seja, no inferno as almas sofrem daquilo que elas guardam dentro de si como culpa. Nesse sentido, estar na Terra com os humanos poderia ser interpretado como uma versão do inferno de Lúcifer, já que é um sofrimento que ele impõe a si mesmo. Isto equivale, até certo ponto ao sofrimento que Jesus se impõe em sua passagem terrena, ainda que por motivação diversa. O Cristo teria vindo para salvar a humanidade pela remição de seus pecados oferecendo-se em sacrifício, obedecendo, ou pelo menos concordando com os desejos (muito embora o Deus judaico-cristão não tenha desejos, teoricamente) de seu pai  (pelo menos é nisso que ele acredita). Lúcifer veio ao convívio dos humanos para satisfazer seu próprio desejo de contrariar seu pai (pelo menos é nisso que ele acredita). Ora, o que o leitor desta digressão pode estar se perguntando (mas que eu necessariamente estou me perguntando) é: Que diabos (com perdão do trocadilho) Ian Gillan e Tom Ellis, ou melhor, Jesus Cristo e Lúcifer estão fazendo no meu sonho?

Daniel Espinoza, intencionalmente ou não, pode ser uma referência a Baruch de Espinosa, filósofo seiscentista ultrarracionalista cujo conceito central é o de afeto, compreendido por ele como tudo vem de fora e o atinge. As afecções. E toda a questão de sua filosofia diz respeito à forma como respondemos a esses afetos. Como potência positiva de perseverança em permanecer vivo e fazer o que se faz (conatus) gerando felicidade, ou de forma negativa gerando padecimento e tristeza. O personagem claramente sofre com seus afetos o que o leva a uma rota de acúmulo de tristezas e sofrimentos, culpas e desespero.

Pois acerca de vós, irmãos meus, fui informado pelos que são da casa de Cloé, que há contendas entre vós.(1 Coríntios 1:11)

Chloe Decker é uma criatura concebida por intervenção divina numa visita de Amenadiel (anjo Irmão de Lúcifer) a pedido de Deus. Seu nome remete ao livro dos Corintios no qual Paulo diz ter sido comunicado por alguém da família de Cloé (possivelmente seus filhos) que vivia provavelmente em Éfeso, de que haviam contendas entre os cristãos daquela região (VERSÍCULOS COMENTADOS, 2020). O sobrenome Decker, por sua vez, remete a deque ou plataforma. 

A figura da detetive Decker no seriado televisivo é catalizadora de toda a história pela singularidade de ser imune ao poder de Lúcifer em desvendar os desejos dos seres humanos. Ele, portanto, não consegue olhar o interior de Chloe e descobrir seus segredos. Uma condição importante para despertar seu amor por ela, posto que o desejo tem a ver com o obscuro e o que não se consegue definir. O que é confuso.

A um só tempo, ela é a razão das contendas entre os irmãos angelicais. Primeiro Lúcifer e Amenadiel e depois eles dois contra Miguel. É como uma plataforma (decker) para que a história dos anjos criadores do mundo possa evoluir. No ponto em que estamos da série (metade da quinta e penúltima temporada) Miguel vem à Terra para atrapalhar a felicidade de seu irmão gêmeo, Lúcifer. Ele chega a insinuar que Chloe teria sido engendrada por ele e seu pai para manipular seu irmão e lhe causar sofrimento. No oitavo episódio da quinta temporada ocorre uma luta titânica entre eles. De um lado Amenadiel e Lúcifer contra Miguel e Mazikeen (que se volta contra Lúcifer por se sentir traída por ele). É nesse ponto que aparece Deus.

 

Elaborando

O que me chamou a atenção nesse sonho foi o fato de que eu, sendo um cético, ou pelo menos me vendo como um, abraço demorada e aconchegadamente a Deus e ao Diabo.

O ceticismo é uma escola filosófica de longa tradição. Conta-se que Pirro, um cidadão ateniense, estava certa vez com um grupo de pessoas e que quando iniciou a chover todos correram para abrigar-se. Porém Pirro passou por um porco que estava parado debaixo da chuva. Nesse momento ele parou e ficou observando o porco e posteriormente comentou quando indagado sobre a decisão: “eu não podia decidir se era melhor correr ou parar diante da chuva, já que meu impulso foi de correr, mas não o do porco. Por isso parei”.

Na verdade, a proposta cética é a de que diante da impossibilidade de julgamento, suspender-se o juízo. Movendo-se, assim para a ataraxia, ou seja, a tranquilidade.

Não convém aqui apresentar todas as minhas questões com as religiões que investiguei durante os 9 anos de análise lacaniana, mas é importante apenas dizer que se no início a religião era causa de sofrimento e angústia para minha mente atormentada, com o tempo ela se tornou objeto de curiosidade, a ponto de me mover a estuda-las mais a fundo em meu doutorado em Ciências da Religião pela PUC-SP.

Evidente nisso que minha opção religiosa se deu pela ciência. No entanto, meu doutorado foi exatamente explorando a questão da profissão de fé na ciência. A ciência apresenta todos os quesitos necessários para ser classificada como religião: doutrina, símbolos, textos considerados sagrados, hierarquia, dogmas, tabus, explicações sobre origem das coisas, crenças em axiomas.

Sim, nem toda religião precisa de entidades sobrenaturais como deuses. Há algumas culturas tradicionais que não creem em seres sobrenaturais.

Sendo assim, a ciência é uma forma de religião e talvez por isso mesmo tenha entrado em choque com outras formas religiosas algumas vezes no decorrer da história (e ainda o faz).

Quando as pessoas me ouvem falar sobre religião pela primeira vez, imediatamente surge a pergunta (ou a rotulação): Você é ateu? Porém, algumas delas, quando me ouvem falar sobre muitas coisas acabam dizendo que sou uma das pessoas mais religiosas que já conheceram. Creio que isto ocorra por conta da minha tranquilidade em relação ao julgamento sobre a existência ou não de deuses.

Penso que esse sonho demonstra um pouco essa tranquilidade em relação a isto. Se existe um Deus eu o abraço e me conforto, se existe um diabo, idem. E se não existirem? Bem, não sinto falta deles. No meu dia-a-dia, nunca penso nisto. Mas parece que no sonho esse desejo se manifesta.

É preciso dizer que em nenhum momento o sonho foi angustiante ou gerou sofrimento, ao contrário, a sensação que melhor o descreve é a de aconchego, portanto, me parece que, concordando com Freud, houve a satisfação de um desejo inconsciente.

Em meus quase 9 anos de análise lacaniana, a questão religiosa esteve presente algumas vezes. Esse processo de escuta de mim mesmo proporcionou apaziguamento em relação a isso. Como se eu tivesse aprendido a lidar com algo que foi muito difícil no passado. O ceticismo vinha já de algum tempo, mas emergiu com força durante o curso de filosofia que coincide com o maior período das sessões de análise e, mais que uma decisão consciente, veio ao encontro de um desejo. O desejo de tranquilidade.

Lúcifer, na série de TV, vai ao divã da doutora Linda para conhecer seus desejos. Seu principal poder é exatamente ser capaz de descobrir os desejos de todos, porém ele não consegue ler os seus próprios. Para entender o que se passa em sua mente e como ela produz sinais e sintomas que afetam sua existência e dificultam a realização de seus desejos, ele precisou de uma analista. Ora, não é esta uma das questões dos psicanalistas? Acabam por conhecer e desvendar os desejos dos outros, mas têm dificuldades de olhar para os seus próprios, daí a necessidade da supervisão.

Sócrates visitava o Oráculo de Delphos em cujo portal se lia: “Conhece-te a ti mesmo”. Frase que ele passa a repetir com frequência. De fato, não podemos conhecer nada sobre o outro, quiçá sobre nós mesmos, porém é só o que nos resta.

O autor da série foi perspicaz ao imaginar um diabo que faz análise e que sofre pelo mesmo motivo que o Jesus da ópera rock, a dúvida. Num retrato bastante fiel aos problemas de nosso tempo, já que uma obra do cinema nunca se refere ao passado ou ao futuro, mas constitui-se numa narrativa do tempo presente.

Vivemos uma sociedade dualista que cada vez se acirra mais nessa postura herdada do maniqueísmo. Assistimos a posturas de exclusão social, virtual, de círculos de amizade, de trabalho, parental, política, racial, de gênero, etc. Pessoas são “canceladas” nas redes sociais como funcionavam os apedrejamentos, as queimas das bruxas e as execuções, no passado. O dualismo depende de uma crença acerca de suas certezas. Somente quando se tem certeza absoluta de que se está certo se pode tomar uma decisão como essas enumeradas acima. Só quando se acredita estar fazendo o bem é possível tratar alguém como se fosse mal. 

Por conta da dificuldade em lidar com as incertezas as pessoas depositam suas crenças em qualquer coisa que lhes prometa paz. No entanto, fazer escolhas é determinar que sejamos responsáveis por elas e que arquemos com seus bônus e ônus.

Franz Rosensweig dizia que preferia as incertezas, pois as certezas o paralisavam. Ele viveu em meio aos judeus alemães durante o terror nazista e sabia muito bem o que as certezas podiam produzir.

Jesus diz: “Pai, afasta de mim esse cálice, pois eu não tenho mais as certezas que tinha” na música de Loyd Weber. Ainda que ele demonstre-se perturbado pela ansiedade da incerteza sobre seu destino, é exatamente a incerteza que lhe faz pedir brevidade e o atira no cumprimento de sua jornada.

Então felicidade não seria encontrar a dúvida que nos move a realizar?

 

 



 

Referências

 

Versículos Comentados - Estudo de 1 Coríntios 1:11 – Comentado e Explicado

https://versiculoscomentados.com.br/index.php/estudo-de-1-corintios-1-11-comentado-e-explicado/ (2020)

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