JOHN SMITH OU ZÉ DA SILVA, MULTIVERSOS OU NARRATIVAS MÚLTIPLAS DA VERDADE EM O HOMEM DO CASTELO ALTO

 


É preciso compreender que um filme ou série que trate do passado ou do futuro como mote para contar uma história não narra senão o tempo presente.

Desde pequeno sou fascinado por ficção científica e dentro da minha vida universitária acabei por dedicar parte dos meus estudos a ela.

A ficção científica é uma produção que une objeto ficcional a uma história e elementos de vanguarda científica que funcionam como amalgama para que a história seja factível ou, ao menos, verossímil. Em geral esses elementos de cunho científico são vagamente explicados e associados a outros fantasiosos para criar uma possibilidade de exequibilidade. É assim que se fala em motores de dobra quântica para viajar a velocidades acima da luz, buracos negros como portais temporais, inteligência artificial senciente, etc.

Como toda quimera, estas também só fazem sentido quando se juntam partes de coisas existentes num arranjo inusitado. Uma sereia como conhecida hoje, por exemplo, é parte mulher e parte peixe. Ambas as coisas que lhe dão origem existem, no entanto, a forma como são juntadas essas partes lhe confere alguma possibilidade de existência real, ou verossimilhança. Se ao invés da cabeça e tronco de mulher e o rabo de peixe tivéssemos a cabeça de peixe e as pernas de mulher, muito provavelmente não faria sentido algum.

Da mesma forma, um elemento ficcional deve se unir a algo do presente para dar sentido à história. Para que o espectador possa se projetar na história e vivê-la, já que esse é o propósito de se contar histórias desde tempos imemoriais. Assim, mesmo que trate do passado ou do futuro, ela tem de se amarrar a perspectivas do presente e nesse senso é uma narrativa construída sobre o presente, sobre o modo de ver o mundo aqui e agora.

Dessa forma, tem sido recorrente nos últimos anos filmes e séries de ficção científica que tratem da ideia da existência de multiversos. Algo que a ciência de vanguarda aponta como hipótese plausível, mas que está ainda muito longe de ser aceita ou com algum grau de certeza. No entanto, essa possibilidade já serve de argumento para a construção da narrativa apoiada ainda no elemento ficcional que é a possibilidade de se construir máquinas, motores ou outras formas de se atravessar e viajar entre os vários multiversos.

Tratarei aqui de uma dessas narrativas que é a série ficcional “O Homem do Castelo Alto”.

 

O Livro

Ela se baseia em um livro homônimo de um dos papas da ficção científica Philip K. Dick (1928-1982). Suas obras têm temas profundos sobre aspectos políticos, sociais e filosóficos, quase sempre associando metafísica, teologia, drogas, transtornos mentais e experiências transcendentais. Sempre questionador da ordem vigente foi pouco reconhecido em vida, mas teve inúmeras obras e contos transformados em filmes e séries de TV como Blade Runner (1982 e 2017), Total Recall (1990 e 2012), Minority Report (2002) e The Man in the High Castle (2015).

Este último, escrito em 1962, ganhou o prêmio Hugo de melhor livro naquele ano e descreve um mundo em que o Eixo ganha a II Guerra Mundial e Japão e Alemanha tornam-se superpotências hegemônicas que disputam poder. A União soviética é desmantelada e os povos eslavos massacrados pelo Reich e os Estados Unidos da América sucumbem e são divididos entra ambas as potências pertencendo os estados da costa oeste aos japoneses e os da costa leste à Alemanha. O centro-oeste permanece como zona neutra e motivo de disputa. É nesse contexto que um livro supostamente escrito pelo Homem do Castelo Alto, codinome do personagem Hawthorne Abendsen (cujo título é The Grasshopper Lies Heavy ou O Gafanhoto Torna-se Pesado), proibido pelos nazistas, passa a circular divulgando a possibilidade de que a guerra não tenha sido perdida pelos aliados. Isto acaba por trazer esperança aos derrotados e trazendo o mote para que as personagens se liguem por meio do I Ching, uma obsessão de Dick que foi usado por ele na produção do livro e na construção dos personagens. O I Ching teria avisado Philip K. Dick que esse livro seria sua primeira produção reconhecida mundialmente. 

No desenvolvimento da história, o autor vai mexendo em elementos e personagens históricos e imaginando o que teria sucedido se tivessem agido de outra forma ou simplesmente morrido. É assim que ele constrói uma outra versão do passado. Algo hoje corriqueiro em diversas produções de ficção, mas bastante inusitado para a época de seu lançamento, principalmente por se tratar de uma história recente de apenas 15 anos após o final da II Guerra Mundial, da qual pouco ainda se havia revelado de documentação histórica. Ele diz ter tido a ideia ao ler Bring the Jubilee de Ward Moore que narra uma realidade paralela na qual os confederados e não os yankees teriam vencido a Guerra da Secessão norteamericana. É assim que ele cria uma desconstrução do passado por meio da fantasia de poder alterar decisões e eventos e seus efeitos em cascata. É assim que ele usa a metalinguagem ao colocar em seu livro o autor de um livro dentro de uma realidade distópica (onde os nazistas venceram a guerra) que diz como seria se os aliados teriam vencido a guerra. Ou seja, uma realidade dentro de outra realidade que diverge da realidade “real”. O que é mais interessante, e que traz a ideia do multiverso, é que a realidade proposta no livro de Abendsen não é a “nossa realidade”, mas uma terceira possibilidade na qual os americanos também teriam saído vitoriosos da guerra, mas dividem o poder mundial com a Inglaterra.

 



A Série de TV

Na adaptação televisiva de 2015-2019, com supervisão e produção do renomado diretor Ridley Scott e participação de uma filha do próprio Philip K. Dick, há uma série de mudanças inclusive de protagonistas. É obvio que não se trata de uma filmagem do livro de 1962, mas de uma outra história construída com elementos do século XXI, alicerçada na premissa do livro.

Dois personagens centrais que não estavam no livro são importantes para analisar a série de TV como uma obra que manifesta e representa seu tempo, John Smith e o Comissário Kido. Este último, interpretado pelo ator Joe de La Fuente, é um inspetor nascido em solo norteamericano que mora em São Francisco na área de domínio do Império Japonês em solo americano. Durante a guerra ele foi colocado num campo de concentração e discriminado pelos americanos. Ele abandonou sua família no Japão. Seu dilema é entre ser subserviente ao imperador e os generais e fazer o que é certo, ainda que por meios não legais. Ele se alia à Yakusa e utiliza estratagemas pouco ortodoxos para um oriental. É assim que ele e o Ministro do Comércio Tagomi (este sim um personagem do livro) decidem enganar os alemães ao enviarem ao Reich um filme que mostra a explosão de uma bomba de hidrogênio no Atol de Bikini em 1946 como sendo um artefato japonês. Dessa forma conseguem evitar o ataque do Reich contra o Império Japonês que significaria uma nova guerra mundial. Tagomi, por outro lado, guarda um orientalismo típico. Preserva as tradições, a honra e o costume. Toma suas atitudes baseadas no I Ching. Seu dilema é em relação à sua família que morreu na guerra e que ele visita em uma outra realidade possível, embora distópica para o Império, e a melhor alternativa para servir ao Imperador e o povo Japonês e evitar uma nova guerra. Por meios diferentes, estes dois personagens buscam o mesmo objetivo, ainda que não pelas mesmas razões.

De outro lado, está John Smith. Nascido em Nova Iorque e tendo sido militar durante a guerra, é membro do alto escalão Reich e (Obergruppenführer uma patente de paramilitares do Partido Nazista em 1932 e depois uma patente da SS inferior apenas ao Reichführer (Heinrich Himmler). Com suas ações em prol do domínio nazista na América se torna o Reichsmarschall, uma espécie de presidente ou governador da parte dos EUA anexados pelo Reich e, eventualmente, o próprio Reichführer. Porém, essa sua ascensão meteórica ao poder tem preço muito elevado. Seu filho mais velho, sendo diagnosticado com uma doença degenerativa genética teria que ser sacrificado pelas leis nazistas de pureza ariana. Ele tenta evitar isto matando o médico que o ameaça de denúncia o que tem um efeito em cascata. Sua esposa (Ellen) mata a esposa desse médico que também desconfia da “família perfeita” e suspeita que eles tenham matado seu marido e o próprio filho (Thomas) acaba por se entregar ao Reich tornando-se um herói, como ele imaginou que seu pai fosse por denunciar fraudulentamente um dos aspirantes ao poder central acusando-o do envenenamento de Hitler. Seu dilema é que quanto mais ele busca deixar sua família em segurança, um pacto feito com a mulher durante a guerra, mais ele a vê se despedaçar corroída pela descrença nos valores do Reich e os ardis utilizados para se manter no poder.

O elemento dinamizador da história é Juliana Crain (no livro Juliana Frink) que é atirada na trama pela irmã que fazia parte da Resistência anti-imperialista. A ela é dado um filme que tem o mesmo nome do livro de Abendsen (O Gafanhoto Torna-se Pesado), no livro de Dick. Ela é namorada de Frank Frink, um operário judeu que esconde sua origem para sobreviver. No desenrolar da história, Frank adere à Resistência e desenvolve seu talento artístico no qual expressa suas emoções assim como a de todos os oprimidos pelo Império Japonês e o Reich. Sua obra torna-se símbolo da resistência. Separados, Juliana envolve-se com Joe Blake, mais tarde identificado por Joe Cinadella (assim como no livro), que descobre ser um Lebensborn, ou seja, um produto de experiências genéticas nazistas para purificar a raça ariana. Ela o mata quando descobre suas intenções após passar por uma lavagem cerebral nazista. Juliana é uma mulher forte e destemida que corre riscos para buscar respostas aos seus questionamentos e que aprende a matar nesse processo. Também aprende a se transportar para a outra possibilidade de realidade sem o uso de nenhum aparelho, apenas meditando, assim como Tagomi, que na outra realidade é seu sogro.

Por causa dela Abendsen é capturado por John Smith e passa a servir aos propósitos do Reich que está desenvolvendo uma máquina capaz de transportar pessoas para a outra realidade. Porém somente a John Abendsen revela que é preciso estar morto nessa outra realidade para que se possa passar para ela.

 

John Smith e a classe média norteamericana e brasileira.

John Smith é um nome extremamente comum nos EUA, mais ou menos como José da Silva no Brasil. Isto talvez não se dê à toa, mas traga uma questão profunda na trama da série. Smith é o homem americano médio. Ele não vê problemas em servir ao Reich, desde que seja beneficiado por isto e possa usar seu poder para garantir esses benefícios. Até certo ponto podemos pensar que de fato o nazismo ganhou a guerra quando percebemos ainda hoje, na nossa realidade, o culto ao belo, ao corpo perfeito, à simetria de formas, à racionalidade, ao poder centralizado, ao Estado como detentor e emanador desse poder. Claro que estas coisas já existiam antes do nazi/fascismo, mas é com eles que se tornam peça central de um projeto de mundo e de poder. Smith não tinha crises de consciência sobre o que fez na guerra, mesmo tendo participado de extermínios em massa, torturas ou chacinas. Tudo estava bem, pois dizia respeito aos outros (judeus, negros, eslavos, etc.). Pode ser sedutor classificar os outros como inferiores ou como inimigos de uma causa, de uma raça, de um projeto de poder. Por isso ele se aliou ao Reich. No entanto, abre-se uma enorme dificuldade quando as regras e valores aceitos para fazer parte desse poder voltam-se contra ele e sua família, os seus. Mas aí é tarde demais para questionar, para se insurgir, para desobedecer. 

Esse é o dilema da classe média norteamericana e, a bem da verdade, da classe média de muitas outras nações, incluindo o Brasil. Milton Santos, meu professor, dizia que a classe média brasileira não quer direitos, ela quer privilégios. Percebo que ele tinha razão ao dizer isto, mas suspeito que esta necessidade imposta a si mesma tenha gerado problemas insolúveis a essa classe média. Ela nunca esteve tão adoecida quanto agora e penso que a série televisiva tenha tentado demonstrar exatamente isto, que a subserviência ao poder acaba por tolher a liberdade, algo tão caro aos norteamericanos e, também aos brasileiros. Cercear as liberdades individuais em nome de uma sociedade mais organizada e perfeita tem efeitos danosos no que se refere ao modo de vida, aos costumes, aos valores, ao caráter. Não há dilema desta classe média em aceitar que negros vivam pior que os brancos, por exemplo, isto já está dado. Veja as tentativas de oposição às leis de cota, antirracistas, e antidiscriminatórias que a classe média tenta criar para que não se equipare a vida dos negros à de um branco mediano. Mas haverá questão moral se nos depararmos com casamentos inter-raciais, por exemplo. Da mesma forma isto se dá com indígenas, judeus, bêbados, velhos, loucos, crianças e mulheres, conforme nos lembra Keith Thomas (1987). Tudo que não tiver a face de um homem branco, cristão, racional, letrado, honrado, heterossexual e atlético será em algum momento e de alguma forma discriminado e tratado como inferior. Daí a necessidade das Paisagens do Medo (TUAN, 2012), os presídios, os manicômios, as escolas, os asilos, as igrejas (FOUCAULT, 2007). Sem essas instituições não seria possível construir seres humanos perfeitos para uma sociedade perfeita. O problema é que as segregações enfrentam oposições e por isso ainda não nos tornamos Estados Fascistas apesar da aderência que esse tipo de discurso tem, mesmo entre populações que seriam discriminadas num regime deste tipo. Por isso há negros, pobres e mulheres que apoiam projetos como o bolsonarismo no Brasil, por exemplo. Estão na mesma posição em que se encontra John Smith, presos nas teias que eles mesmos ajudaram a construir e quando perceberem será tarde demais para tentar se insurgir. Não há outra forma de entender o discurso de campanha em que o atual presidente da república dizia que as minorias devem se curvar às maiorias. É exatamente o projeto nazi/fascista.

Fenômenos atuais como Bolsonaro no Brasil, Trump nos EUA, Le Pen na França não ocorrem do nada, são produtos do recrudescimento da veia nazi/fascista que ganhou a guerra. É preciso entender que não havia a alardeada oposição entre Aliados e o Eixo como se fossem água e óleo. O Brasil de Vargas era muito mais parecido com a Alemanha de Hitler do que com os Estados Unidos de Roosevelt, mas o peso das ameaças dos americanos e suas promessas de progresso obrigaram ao alinhamento com eles. Não porque os valores de EUA e Alemanha fossem muito diferentes. Ambos foram imperialistas, impiedosos com as diferenças, discriminatórios e capazes de atrocidades pelo projeto de poder.

Em meio à pandemia Covid-19 e sem conseguir elencar os esforços que a presidência da república fez para atacar este inimigo comum dos brasileiros, já que até o momento tivemos 350.000 mortes e caminhamos a passos largos para totalizar perto de um milhão até o final do ano de 2021, os eleitores de Bolsonaro encontram-se no dilema de John Smith. Não podem reagir negativamente a suas “pataquadas” para não se tornarem alvos de seus antigos correligionários e a única saída é continuar assentindo aos seus discursos espúrios, suas atitudes grosseiras e seus desmandos absurdos para, quem sabe, poderem se beneficiar no futuro em que não haja mais Bolsonaro. Houve uma adesão à veia nazi/fascista por estas minorias que se sentiam não representadas em seus modos pouco atraentes para a classe média e a elite. Por isso Bolsonaro parece aquele tio mal-educado, grosseiro e fanfarrão dos churrascos do domingo, esta caricatura serviu a um propósito. Da mesma forma que, Trump para os norteamericanos, num nível um pouco mais refinado, mas tão caricatural quanto.

 

Multiversos ou narrativas múltiplas da verdade

Diferentemente do livro de Philip K. Dick, a adaptação para a TV traz um elemento científico do século XXI, a ideia de multiverso.

Giordano Bruno, filósofo, foi queimado em praça pública pela inquisição católica em Roma em 1600 por ter defendido a ideia de outros mundos como o nosso. Sistemas planetários ao redor de outras estrelas como o Sol, eventualmente criando suas próprias formas de vida. Uma posição filosófica conhecida como Pluralismo Cósmico. Ocorre que algumas pesquisas científicas têm apontado para a possibilidade de que a expansão do cosmos seja tão veloz (velocidade da luz) e as distancias tão grandes que seja possível que algumas zonas desse cosmo possam ter diminuído sua expansão ou formem “bolhas” que constituem, por exemplo, o universo observável por nós. Mas isso não quer dizer que não possa haver outras “bolhas” não observáveis por nós nesse momento. Isto também não quer dizer que o tempo seja estável e compreendido da forma que Newton o concebeu (passado, presente e futuro como linearidade), mas que possa haver coexistência de tempos, posto que o tempo é relativo (definição eisnsteiniana). Apenas a possibilidade da existência desses multiversos abre brechas importantes na visão monolítica de tempo-espaço conforme aprendemos na escola. Embora as teorias de Einstein já tenham mais de cem anos, até hoje elas não são ensinadas nas escolas e até mesmo em cursos superiores da área de física somente incluem noções dela sem grande aprofundamento a não ser que se vá para a área da astrofísica. Isto tem um propósito. Nosso mundo, nossa organização do mundo, das nações, dos Estados, das fronteiras, dos territórios, das coisas, são concebidos como se o espaçotempo fosse estável à maneira newtoniana. Por isso a ciência, como concebida no alvorecer da Modernidade busca a formulação de leis gerais e de diferenciação e classificação da natureza, seja ela interna ou externa a nós. Note-se, por exemplo, a relativamente recente classificação de diagnósticos possíveis para transtornos mentais que cresce a cada dia.

Ambas as ideias, de multiversos e de coexistência temporal, foram usadas à exaustão por ficções científicas nos últimos anos. Algumas delas se valem da viagem no tempo, outras das viagens de tempo e espaço. Caso de sucesso recente é a série de TV Dark que traz ambos os argumentos para seu desenvolvimento.

 No caso da adaptação de O Homem do Castelo Alto, optou-se pelo multiverso como forma de atingir outras realidades chegando os nazistas a criarem um mapeamento dos possíveis universos que comporiam o multiverso e criando uma máquina que permitiria essa viagem a um deles.

Porém, há uma questão simbólica que podemos analisar nessa escolha pela ideia de multiverso. No nazismo alemão havia a criação de uma verdade histórica por meio de uma narrativa do que fosse a verdade em face da dificuldade de se noticiar essa verdade. As informações eram parcas e os recursos para produzir as informações e divulgá-las eram controladas pelo Estado. Dessa forma, causou surpresa para alguns alemães e para a maioria dos aliados a divulgação de imagens dos campos de concentração quando foram libertos. As condições deploráveis e as mortes em massa dos judeus e outras etnias que para estes campos eram enviados foram acobertadas até o último momento dos inimigos do Reich e de camadas da sociedade alemã por meio de narrativas oficiais construídas.

Hoje o volume de informação, a disponibilidade e acesso barato aos meios de produzir e divulgar esta informação é tamanha que o problema se inverteu. Se na Alemanha nazista só podia haver uma verdade, a oficial, no mundo atual fica difícil escolher qual a versão da verdade correta. 

Juliana Crain é perseguidora dos detalhes da verdade. Ela busca entender as várias possibilidades por meio da construção minuciosa que afaste a dúvida, por isso ela quer conhecer o Homem do Castelo Alto, se interessa pela forma como ele coleciona os filmes das realidades alternativas, adere à resistência, trabalha no prédio da administração de São Francisco pelos Kempeitai (a polícia política japonesa), vai a Nova Iorque conhecer/espiar o Reich, visita o outro universo e decide retornar ao seu quando encontra essa verdade.

Robert Childan, personagem central no livro que acabou um pouco menos importante na série de TV, é antagônico a Crain. Ele possui uma loja em São Francisco que vende relíquias e antiguidades americanas para os japoneses. Tem profunda reverência pelo modo de vida e a cultura japonesa, ainda que os engane quando cria histórias para cada peça que vende, mesmo que seja falsa. Ele sabe que a verdade é uma construção cuja estrutura é feita dos detalhes que conferem historicidade à narrativa. Numa das cenas ele mostra dois isqueiros Zippo absolutamente iguais. Um deles teria pertencido a Franklin Delano Roosevelt quando foi assassinado (na realidade alternativa ele não morreu) e diz que por isso ele teria um valor inestimável enquanto o outro não teria valor algum. São os detalhes, os caminhos e descaminhos que fazem com que algo tenha valor, ou seja, os valores dependem das experiências e, por isto mesmo, são subjetivos.

Se a percepção de que a velocidade e as imensas distâncias do cosmo fizeram surgir no meio científico a hipótese da existência de multiversos, é muito provável que a infinidade de informações produzidas todos os dias pela popularização de ferramentas, aparelhos, aplicativos e a internet tenha feito surgir a descrença de que possa haver verdade e, dessa forma, multiplicado as versões da história ou das narrativas históricas, como vêm sendo chamadas ultimamente. Algumas delas facilmente classificadas como fakenews, porém sempre alguma adesão. 

As bem-sucedidas táticas de Trump e de Bolsonaro se assemelham. Consistem em criar o dissenso a controvérsia dos fatos produzindo inúmeras narrativas destes. Diante de tantas versões da verdade, o cidadão terá de escolher uma para si. Uma que lhe traga sentido e na qual veja algum proveito. É aí que ele se coloca na posição de John Smith/José da Silva. Desde então, enredado nessa armadilha na qual entra voluntariamente, persiste nela mesmo que esteja à beira do precipício ético e moral, mesmo que todo o mundo que essa suposta verdade produz esteja desmoronando ou se voltando contra ele. Não há mais como escapar sem admitir que errou, sem se insurgir contra a máquina que ajudou a erigir. 

A verdade agora está em todo lugar e em lugar algum. Não há como comprovar a verdade dos fatos ele pensa, assim como Childan, portanto basta que se produza uma narrativa verossímil para que ela seja autorizada como verdade.

Nossa posição passa a ser a de Juliana Crain que tenta reconstruir a historicidade dos fatos ao invés de criar uma narrativa sobre eles. Por isso ela vai tendo experiências do real, enquanto Childan se recusa a elas, da mesma forma que Frank no início da história. Frank desperta do torpor e do conformismo quando é levado pelo Kempeitai, torturado e tem sua irmã e sobrinhos mortos por eles. A partir daí ele entra para a Resistência, arrisca sua vida num atentado para impedir a finalização da bomba atômica japonesa e refugia-se na Zona Neutra onde redescobre sua origem judaica. Childan continua subserviente aos japoneses, pois se sente superior a eles de alguma forma por conseguir enganá-los com suas narrativas. Embora ele seja americano, renunciou a sua cultura, sua identidade, vendendo fragmentos da história de seu país como suvenires de valor fictício, pois são fictícios para ele também.

 

Kido e Smith e as diferentes experiências de ser americano

Ambos, Kido e Smith nasceram na América e partilham interesses em comum, até mesmo trocando informações e tramando estratégias conjuntas, porém seus propósitos são diversos em função de suas diferentes experiências de serem americanos.

Kido mostra total obediência e devoção aos japoneses, pois odeia os americanos que o discriminaram colocando-o num campo de concentração. Ele desdenha até mesmo de outros americanos que tentam ascender socialmente entre os Kempeitai, como fica claro na cena em que ele manifesta desprezo pela forma como um dos aspirantes ao cargo de seu braço direito fala japonês. Ele também não se importa com os negros que estão em situação de escravidão. Embora tenha abandonado a família, ele torna seu filho um Kempeitai e valoriza que ele seja um bom servidor da pátria japonesa, apesar do filho não aceitar o papel que seu pai desempenha nessa estrutura de poder. A forma como ele mata Frank após persegui-lo na Zona Neutra é interessante, pois demonstra como ele assumiu uma identidade japonesa. Ele tenta a todo custo impedir que o Japão perca o controle dos territórios ocupados do pacífico e não mostra nenhum arrependimento ao agir com extrema violência para punir os americanos pelo atentado. É um crente na ideologia e na narrativa (eu prefiro discurso) da ideologia japonesa. Ainda que busque caminhos para a paz com o Reich, ele o faz por acreditar que o Japão perderia essa guerra se ela acontecesse. Desconhece as outras narrativas de possíveis verdades, pois sequer quer ouvi-las. Somente aceita levar o filme que mostra a outra realidade da bomba de Bikini que Tagomi lhe mostra, porque percebe uma possibilidade de evitar a guerra.

John Smith tem profunda relação com sua família. Marcada pela cumplicidade de Ellen ele se sente constrangido quando o filho demonstra adesão total ao Reich e sua ideologia e discurso. Ou mesmo quando a filha menor espontaneamente se levanta na homenagem prestada a seu irmão e faz continência. Ele continua reproduzindo os valores do Reich, continua a trabalhar para eles ajudando-os a apagar os símbolos e enterrar os valores americanos, mas apenas porque espera acordar desse pesadelo em que se meteu. Numa das cenas em que Himmler vai jantar em sua casa em Nova Iorque, ele diz que o Reischführer pode confiar nele, mas Himmler diz que isso não basta e que ele quer sua devoção. Esta é sua dificuldade. Por ter trocado sua narrativa da verdade em nome de uma possível proteção de sua família e projeção de si mesmo ao poder, ele acaba por perder o pé de que valores e que experiências quereria ter.

Kido pensa e age como nossa classe média brasileira. Aspira ser norteamericana, viajar para Disneyworld e consumir produtos importados. Acredita nas fábulas do American Way of Life e do Estado Mínimo do liberalismo econômico. Aceita que os outros sofram para que ele continue tendo privilégios e quando muito, expia seus pecados fazendo caridade e falando em gratidão e namastê. Adota um discurso sobre a defesa da família, mas é apenas isso, um discurso que ele repete para tentar se convencer dele. Não reconhece a cultura brasileira como legítima e considera os pobres, os indígenas e o negros como inferiores e “malandros” e “vagabundos” que não gostam do trabalho e só querem viver de auxílios públicos. Nada os demoverá de suas crenças e por isto é inútil tentar argumentar com eles ou dissuadi-los de suas ideias, pois eles têm necessidade de crer no que creem. Ao contrário, elas buscam e produzem narrativas para sustentar o que pensam a partir da simples verossimilhança. Se parece verdadeiro, é verdadeiro. Se dito e repetido inúmeros vezes, vira verdade. Não importa sua origem ou sua historicidade.

John Smith representa a classe média norteamericana que se imagina predestinada a vencer e não mede esforços nem se constrange com o sofrimento alheio para que isto ocorra. O passado sangrento é apagado pelas conquistas alcançadas e os massacres ocorridos de indígenas ou negros é um custo aceitável para que ele continue no poder e que pode ser amenizado com narrativas alternativas que acobertem o genocídio. Uma das características de uma ideologia é que quando ela se implementa, apaga seus rastros apagando a história, parecendo assim que tudo é como sempre foi. Na série isto é chamada Iniciativa Jahr Null ou Ano Zero que buscava apagar os traços da memória norteamericana e construir um novo Reich Americano. Os jovens são incitados a irem às ruas e as escolas adotam posturas ainda mais reprodutoras dos valores e ideologias germânicas. Smith não apenas assiste a tudo isto, como também participa do processo, já que o que importa é a manutenção de seu poder e ascensão a um poder ainda maior como forma de poder mudar as regras do jogo. O que ele não percebe é que a partir do momento em que ele renuncia aos seus valores para associar-se aos do Reich, não é mais possível retornar.

 

Multiversos?

Se lembrarmos, como disse no início, que um filme ou série de época não fala senão da sua própria, perceberemos que a série O Homem do Castelo Alto se vale da ficção científica como linguagem para construir uma forma simbólica daquilo que vivenciamos hoje no mundo permeado por uma avalanche de informações, desinformações e fakenews que visa desestabilizar a credibilidade. Não à toa, as universidades, os cientistas e tudo aquilo que se tinha como certo está sendo posto em xeque. Nem a Terra é mais redonda.

Figuras grotescas como Jair Bolsonaro, Donald Trump, Olavo de Carvalho e todos da sua espécie podem, dessa forma, serem ouvidos e aceitos, pois produzem narrativas e contranarrativas que criam a dissuasão. Dizem algo para negar a seguir. Ainda que tenham sido filmados, gravados, com documentos assinados, dizem sem nenhum constrangimento que era mentira ou que estavam apenas brincando. Pode ser que no futuro sejam desmascarados e julgados pela história (se ela ainda existir com historicidade e detalhes), mas até lá já terão abalado os edifícios da ideologia vigente.

Não se trata, portanto de multiversos, mas de versões diferentes da verdade, interpretações produzidas com propósitos distintos, exegese encomendada pelos poderes difusos. Temo que não restem Julianas capazes de reconstruir a historicidade das coisas.

 

Referências

BIBLIOTECA DO CECULT - Matérias interessantes - O que é multiverso?, Universidade Federal do Recôncavo Baiano, disponível em: https://www.ufrb.edu.br/bibliotecacecult/noticias/262-materias-interessantes-o-que-e-multiverso, 27/05/2021.

CARRÈRE, Emannuel - Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos: A Vida de Philip K. Dick, São Paulo, Aleph, 2016.

DICK, Philip K. – O Homem do Castelo Alto, São Paulo, Aleph, 2006.

FOUCAULT, Michel - Vigiar e Punir – História da Violência nas Prisões, São Paulo, Vozes, 2007.

THOMAS, Keith – O Homem e o Mundo Natural, mudanças de hábitos entre homens e animais de 1500 a 1800, São Paulo, Cia das Letras, 1987

TUAN, Yi Fu – Paisagens do Medo, São Paulo, UNESP, 2012

Comentários

  1. Excelente artigo, esse paralelo do livro com nossa realidade atual, mostra o quanto visionário e gênio era p.k. DICK, ainda não assistir a série, em breve pretendo assisti-la.

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    1. Obrigado, meu caro! Vais gostar muito da série. De fato PKD era genial.

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  2. trisenriaso_1988 Peris Duncan Crack
    eruaphsacbull

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