INTERCULTURALIDADE EM STAR TREK: GENE RODDENBERRY QUESTIONANDO SEU TEMPO (E O NOSSO)


 O artigo busca demonstrar como o universo criado por Gene Roddenberry em meados dos anos 60 questionava e instigava a interculturalidade de seu tempo na série de TV Star Trek (Jornada nas Estrelas). A ponte da Nave Estelar Enterprise (Empreitada ou Empreendimento) é, em si, um modelo de sociedade futura proposto por Roddenberry do ponto de vista de sua composição inter-racial e intercultural. Um capitão humano e norte-americano (James T. Kirk), auxiliado por um oficial de ciências vulcano (Spock), um médico também norte-americano (Leonard MacCoy), uma tenente de comunicações negra (Nyota Uhura, nome Swahili), um piloto japonês (Hikaru Sulu), um navegador russo (Pavel Chekov) e um engenheiro escocês (Montgomery Scott) têm a missão de desbravar o espaço interestelar por cinco anos indo “aonde nenhum homem jamais esteve”. A serie foi ao ar em 1966 (auge da Guerra fria) e aponta para um futuro em que as questões do conflito foram superadas pela cooperação e diálogo entre as culturas e suas diferenças. Vários são os exemplos dessa cooperação ao longo da série e muitos paradigmas e tabus foram quebrados por ela como o primeiro beijo inter-racial da TV norte-americana (entre Kirk e Uhura), e um oficial não humano (Spock), principal amigo e conselheiro do capitão da nave, mesmo tendo orelhas pontudas e sangue verde - fato muito questionado pela opinião pública que chegou a pedir inúmeras vezes a suspensão da série por conta disso. Mais que isso, o próprio Capitão Kirk é o protótipo do ser humano em sua dualidade Razão (representada por Spock) / Emoção (representada por McCoy) e tendo que encontrar soluções para os desafios e perigos do espaço a partir da vivência dessa dualidade e contando com as contribuições e atributos de cada um dos profissionais da nave e sua rica diversidade cultural. Finalmente o artigo questiona e problematiza sobre as dificuldades de aceitação dessa interculturalidade dentro das organizações após 50 anos em que a série Star Trek foi ao ar.

 

 

Introdução

Nasci em 1966, mesmo ano em que foi ao ar a série Star Trek (Jornada nas Estrelas) por uma rede de TV norteamericana. Três anos depois, em 20 de Julho, Neil Armstrong pisava pela primeira vez na superfície lunar. Estes dois acontecimentos me marcaram profundamente e determinaram, de certa forma, minhas escolhas e a forma com que penso e vejo o mundo.

Me lembro de minha mãe me acordando para acompanhar pela TV as imagens do pouso do módulo lunar e a saída dos astronautas. Uma das memórias mais antigas de que me recordo. Mais tarde, quando comecei a ler, me lembro de uma coleção de pequenos livros sobre ciências que falavam do espaço sideral, entre outras coisas. Mais ou menos na mesma época, comecei a assistir as aventuras de Star Trek na televisão brasileira e pouco depois, fui com minha mãe assistir a estreia de Star Wars (Guerra nas Estrelas, 1978) num cinema de São Paulo. Chegamos tarde e a sessão já havia iniciado. Isto não impediu que eu mergulhasse no filme, mas fiz minha mãe ficar para o início da sessão seguinte para que eu pudesse ver o começo do filme. Meu sonho em ser um astronauta iniciava.

Roddenberry em seu tempo

A genialidade de Roddenberry, que eu só percebi mais recentemente, não foi conceber a trama de Star Trek, mas a de reconhecer suas potencialidades.

O episódio piloto, que só foi ao ar bem mais tarde, trazia já a ideia de uma nave estelar que viajava pela vastidão da galáxia, mas as características de sua tripulação ainda não estavam prontas. Neste episódio, o capitão da nave era a personagem Christopher Pike, interpretada pelo galã Jefrey Hunter, auxiliado pelo oficial de ciências, esse sim já era Spock, interpretado pelo mesmo Leonard Nimoy. No entanto a relação entre eles era diversa da que se estabeleceu com o capitão James Tiberius Kirk, interpretado por William Shatner (outro galã) e as características pessoais da personagem de Nimoy na7o estavam completamente estabelecidas. Já ficava claro que ele era um alienígena de um planeta chamado Vulcano e que tinha algumas características físicas diferentes como as orelhas pronunciadas e pontudas, no entanto, suas características emocionais e seu modo de agir e pensar eram diferentes. Há uma cena em que Spock sorri ao observar uma flor em um planeta que visitam. Se pensarmos nas características do personagem ao longo dos três anos da série e dos filmes do cinema mais tarde, percebemos uma incongruência. Spock age e pensa racionalmente, de acordo com a educação vulcana que preconiza o domínio das emoções pela razão. Isto demonstra, portanto, que a personagem não estava totalmente concebida por Roddenberry. Mais tarde, Nimoy conta em seus livros e entrevistas que ele participou ativamente dessa construção concebendo seu modo de pensar e agir, sua relação com Kirk e até mesmo o sinal de “Vida Longa e Próspera” que caracterizaria todos os vulcanos.

O restante da tripulação do primeiro episódio também não tinha característica definidas que marcaram a série nos episódios posteriores. Inclusive o fato do capitão Pike se apaixonar por uma humana que vivia entre os alienígenas de Talus V e que havia sobrevivido e sido resgatada por eles da queda da de sua nave, mas “remontada” sem nenhuma referência de beleza. Pike a vê bela porque os talusianos leram seus pensamentos e colheram deles esse ideal de beleza.

Kirk teve muitos enlaces amorosos nos três anos de jornada, mas em nenhum momento titubeou entre se entregar a esses amores e deixar sua espaçonave Enterprise. Ela é seu verdadeiro e único amor.

A partir dos episódios que foram ao ar, começamos a perceber que a tripulação da nave ganhava robustez em suas características e a figura do capitão Kirk começa a ser concebida de forma tripartite. Frequentemente ele é chamado a tomar decisões difíceis que podem custar sua vida e a de sua tripulação, frente aos encontros com sociedades e seres dos mundos que visita. Estas decisões são sempre sopesadas pelos conselhos de Spock, que simboliza a racionalidade e Leonard MacCoy (DeForest Kelley), o médico chefe da nave, que simboliza a emoção. Os impulsos e respostas de Spock e MacCoy são sempre padronizados em torno desta pecha. Cabe a Kirk sempre ter de escolher entre estas duas posições a que ele deverá tomar.

Há algo de propriamente humano nessa dualidade em que se encontra Kirk e que o obriga a definir-se. Sua característica principal é a de conseguir tomar decisões surpreendentes e de contar com os riscos e com os acontecimentos a partir dessas decisões. Isto se assemelha em muito com a forma de pensar do próprio Roddenberry.

Os outro oficiais que ocupam a ponte de comando vão sendo construídos de forma muito instigante para seu tempo. O navegador da nave é o russo Pavel Checov (Walter Koenig) demonstrando que Gene Roddenberry questionava apenas quatro anos depois da “Crise dos Mísseis”, incidente que quase descambou na Terceira Guerra Mundial, a hegemonia norteamericana e a impossibilidade de negociações e cooperações com os soviéticos para o bem comum.

Hikaro Sulu (George Takei) é o piloto de origem japonesa que tem papel muito importante nas aventuras da série assim como Montgomery Scott (James Duhan), engenheiro chefe e responsável por manter a Enterprise, o amor de Kirk, em funcionamento. Ele tem origem escocesa que também é explorada ao longo da série bem como a de todos os personagens.

Nyota Uhura (Nichelle Nichols) é a oficial de comunicações. Seu nome em suahilii é uma marca de sua origem africana. Além de ser a úncia oficial mulher e negra na ponte da Enterprise ela protagonizou o primeiro beijo inter-racial da televisão norteamericana ao beijar o capitão Kirk no episódio “Os enteados de Platão” (Plato’s Stepchildren) que só pode ir ao ar depois de derrubadas as leis que iam contra o casamento inter-racial naquele país em 1968. 

Isto demonstra como Gene Roddenberry estava conectado às mudanças de sua sociedade e de seu tempo, além da percepção de que mudanças seriam possíveis a partir da valorização da interculturalidade. Um conceito que hoje é corrente, mas que nos anos 60 era um tabu bastante notório. O assassinato de Martin Luther King no mesmo ano (1968) e as manifestações que ocorreram por todo o país a partir do crescimento do movimento negro mostra que Roddenberry utilizou muito bem a série do ponto de vista político.

Esta é a genialidade dele. A percepção de que ele tinha criado uma narrativa que não falava apenas de futuros possíveis, mas que se tratava essencialmente de uma narrativa e uma proposição para o presente e para a cultura em que estava imerso.

Os recursos tecnológicos disponíveis para a produção da série eram bastante escassos, mas ele encontrou uma fórmula para superar essas dificuldades, roteiros e histórias muito bem construídas, alicerçadas em obras clássicas da literatura mundial, em aspectos filosóficos, em dilemas existenciais profundos. Para além disso, a solução desses problemas e percalços aos quais se submetiam os tripulantes da Enterprise eram sempre resolvidos a partir das potencialidades de cada um deles. A humanidade está nela representada.

 

Organizações, países e empresas deveriam olhar com bastante atenção para esta série tão curta, mas que deixou marcas tão profundas a ponto de alcançar as telas do cinema em diversos filmes e de se desdobrar em uma miríade de outras séries derivadas, quadrinhos, livros e animações, gerando uma legião de fãs pelo mundo todo. 

Ainda hoje a interculturalidade é vista com desconfiança e as questões raciais, étnicas, sexuais e de gênero são motivos de intolerância conflitos porque não se percebeu que a humanidade é múltipla e que a diversidade é positiva.

Uma única vez me aventurei em cargo de direção de um grande grupo empresarial da educação. Foi uma janela de aprendizagem muito importante para mim. Numa oportunidade fomos convidados, os oito assessores educacionais dos quais eu fazia parte, a fazermos um teste baseado na teoria junguiana de tipos psicológicos. A partir de um conjunto de perguntas predeterminadas as pessoas são separadas em dois tipos de tendências ou propensões: extroversão (tendem a se ocupar e observar mais as coisas a partir de referenciais externos) e introversão (preferem concentrar energia em seu próprio mundo de ideias, emoções e impressões pessoais).

 

Extrovertidos (E)

Introvertidos (I)

Libido se movimenta na direção do mundo exterior

Libido se movimenta na direção de si mesmo

Objeto e realidade exterior são de vital importância 

Realidade interior é de vital importância 

Natureza saliente e franca

Natureza vacilante, meditativa e isolada

Adapta-se com facilidade às situações diversas

Recua diante das situações e está sempre na defensiva

Gosta de viajar, encontrar novas pessoas e conhecer lugares

As forças motivadoras vêm de lugares internos ou subjetivos

Considera os introvertidos chatos e negativos

Considera os extrovertidos fanfarrões e superficiais

 

Além disso considera quatro funções psíquicas primordiais e motivadoras: sensação, pensamento, sentimento, intuição, julgamento e percepção.

 

Sensação (S)

Intuição (N)

Pensamento (T)

Sentimento (F)

Julgamento (J)

Percepção (P)

Percepção sensorial por meio das experiências conscientes produzidas pelos órgãos do sentido

Não exige nenhum julgamento

Estabelece conexões lógicas e conceituais entre fatos percebidos

É uma mente avaliadora

Controle 

Adaptação

Utilização dos cinco sentidos

Não sabe de onde vem a intuição nem como a determinar

Análise lógica e racional

Tende a aceitar ou rejeitar uma ideia definindo-a como agradável ou desagradável.

Decisão 

Inspiração

Percepção de algo passa pelo concreto, o senso de realidade e a realização.

Imaginação 

Julgam, classificam e discriminam uma coisa da outra sem maior interesse pelo seu valor afetivo

Afetividade, empatia

Organização 

Flexibilidade

Muito ligada ao “aqui e agora”

Visão de futuro

Se orientam por leis gerais aplicáveis às situações 

Conciliação 

Experiência  

Informação

 

Percepção não sensorial (extra-sensorial)

Procuram ser imparciais em seus julgamentos

Zelo por sua subjetividade e seus relacionamentos emocionais com as pessoas

 

 

 

Forte criatividade e facilidade para enxergar as novas possibilidades 

Movidos pela lógica, a racionalidade, a objetividade e busca por resultados

 

 

 

 

O próprio Jung não concebia essas tendências psíquicas como estanques ou como determinantes do sujeito, mas como conjuntos de características que podem trazer autoconhecimento a quem consegue percebê-las em si mesmo.

O teste que fiz baseia-se no sistema conhecido como MBTI - Myers-Briggs Type Indicator e foi adaptado das ideias iniciais de Jung por Katherine Cook Briggs e Isabel Briggs Mayers, mãe e filha respectivamente, que queriam melhorar as contratações de funcionários para sua empresa em 1941. O sistema baseia-se em questionários que analisam comportamentos e respostas a estímulos e que, depois de analisados, oferecem um sistema de quatro letras-símbolos que se referem às características dos tipos psicológicos descritos por Jung. Meu primeiro resultado, a cerca de 10 anos, deu como resultado o conjunto ESTP, ou seja, eu era, segundo o teste daquela época, um sujeito Extrovertido, Sensório, Pensador e Perceptivo. Confesso que me reconheci naquele resultado na época. No entanto, refiz o teste recentemente e obtive resultado ligeiramente diferente: ENFP, o que faz muito sentido, já que de dez anos para cá fiz muitas incursões no campo da psicanálise e da escuta sensível, que promoveram aumento na minha capacidade empática, bem como da perspicácia e intuição que também vieram por meio da idade e do acúmulo de experiências.

Esse tipo de análise pode e deve ser usado para que se percebam potencialidades e para que se apontem fragilidades a serem trabalhadas pelo sujeito. Isto poderia ser mais utilizado por empresas e organizações para que se possa estabelecer grupos e equipes de trabalho que tenham resultados mais positivos e nas quais as características de um componente sejam complementares a de outros da equipe. Eu, por exemplo, sei que não me atento muito a detalhes, pois rapidamente e com poucos elementos percebo condições de uma ideia ou projeto ser implantado ou como fazer uma avaliação. Preciso, portanto, ter em minha equipe alguém que possa ter atenção a esses detalhes e a um certo tipo de organização mais formal para que eu mesmo possa funcionar melhor e me sentir bem.

Numa equipe intercultural o mesmo deve se dar. As culturas e formas de vida influenciam sobremaneira como cada sujeito percebe o mundo, concatena ideias, se organiza e se sente feliz. Era isto que fazia a ponte da Enterprise ser o que era e ser capaz de resolver as questões que lhe apareciam. Um indivíduo da equipe podia contar com as habilidades dos outros e reconheciam esse valor.

Esta é precisamente a genialidade de Roddenberry que não estava presente apenas na concepção que passou a ter da série conforme ela se estabelecia, mas também a confiança que depositava nos atores e roteiristas que compunham histórias e personagens conjuntamente, conforme relataram mais tarde. Nisto ele é muito diferente de George Lucas, criador de Star Wars, por exemplo. Lucas é genial por ter concebido toda uma saga mitológica de uma vez, a tal ponto de ter decidido iniciar a narrativa dessa saga contando a história do filho Luke Skywalker (Mark Hamill) nos episódios IV, V e VI para dez anos depois contar a do pai Anakin Skywalker/Darth Vader (Hayden Christensen) nos episódios I, II e III.

Hoje, 13 de outubro de 2021, Willian Shatner (o capitão Kirk) foi lançado ao espaço num foguete da corporação Blue Origin do bilionário Jeff Bezos. Obviamente ele será o garoto (mesmo com 90 anos) propaganda da empresa que pretende, juntamente com duas outras megacompanhias, serem precursoras do turismo espacial. Foi inevitável que eu me lembrasse de tudo que isso representa para mim. 

Ao contrário do que se possa imaginar, me tornei astronauta, pois ser astronauta não significa ter de sair da atmosfera terrestre, mas implica, necessariamente, ter de perceber a Terra como uma astronave. Uma aventura que só aumenta de complexidade à medida em que se expande o conhecimento sobre o cosmos. É claro que a sensação de estar sem gravidade, de olhar a Terra toda de cima deve ser fantástica e inesquecível, como disse Shatner, mas faço parte dessa equipe que, mesmo sem perceber trabalha em conjunto para que estendamos nosso alcance no universo. Por isso temos telescópios, sondas, viagens interplanetárias e diversos tipos de escuta do espaço sideral em busca de sinais de formas de vida. Seres humanos são seres sociais e essa é nossa principal estratégia de sobrevivência, a sociabilidade. Roddenberry nos alerta para isto. Por isso buscamos formas de vida com quem possamos trocar. Quem será nosso primeiro Spock?

 

 

Rocket Man

 She packed my bags last night pre-flight

Zero hour 9:00 a.m.
And I'm gonna be high
As a kite by then
I miss the Earth so much I miss my wife
It's lonely out in space
On such a timeless flight
And I think it's gonna be a long, long time
'Til touchdown brings me 'round again to find
I'm not the man they think I am at home
Oh, no, no, no
I'm a rocket man
Rocket man, burning out his fuse up here alone
And I think it's gonna be a long, long time
'Til touchdown brings me 'round again to find
I'm not the man they think I am at home
Oh, no, no, no
I'm a rocket man
Rocket man, burning out his fuse up here alone
Mars ain't the kind of place to raise your kids
In fact it's cold as hell
And there's no one there to raise them
If you did
And all this science
I don't understand
It's just my job five days a week
A rocket man
A rocket man
And I think it's gonna be a long, long time
'Til touchdown brings me 'round again to find
I'm not the man they think I am at home
Oh, no, no, no
I'm a rocket man
Rocket man, burning out his fuse up here alone
And I think it's gonna be a long, long time
'Til touchdown brings me 'round again to find
I'm not the man they think I am at home
Oh, no, no, no
I'm a rocket man
Rocket man, burning out his fuse up here alone
And I think it's gonna be a long, long time
And I think it's gonna be a long, long time
And I think it's gonna be a long, long time
And I think it's gonna be a long, long time
And I think it's gonna be a long, long time
And I think it's gonna be a long, long time
And I think it's gonna be a long, long time
And I think it's gonna be a long, long time
And I think it's gonna be a-
Traduzir para o português
Fonte: Musixmatch
Compositores: Elton John / Bernie Taupin

 

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