“TODA ESCOLHA É SÓ UMA ILUSÃO” – MATRIX RESSURRECTIONS E A PÍLULA VERMELHA DA LOUCURA DO REAL
O inconsciente se estrutura como linguagem. Essa frase proferida por Freud e ampliada por Lacan, traz para este último implicações constitutivas de sua clínica psicanalítica. Para ele não apenas utilizamos uma linguagem para nos comunicarmos, mas somos constituídos por ela e estamos dentro dela de tal forma imbricados que Lacan inicia sua tentativa de entendimento e registro dessa linguagem de forma metódica e matemática dividindo-a em três campos (CLAVURIER, 2013). O simbólico, o Imaginário e o Real. Ele o faz em 1953 com uma representação gráfica bem ao estilo cartesiano.
Somente 20 anos depois, em 1973 é que ele adotará uma outra forma de compreensão dessas três dimensões (Dit-mansions = mansões do dito, como escreve Lacan) por meio do Nó-borromiano Real, Simbólico, Imaginário (RSI). Nessa representação, ele passa a ver os três campos como absolutamente indissolúveis e como formadores do que chamamos de realidade. Se cada uma dessas dimensões fosse constituída por cordas e pudéssemos puxar essas cordas, formar-se-ia um buraco bem no centro desse entrelaçamento. Esse buraco é o desejo (Objeto a).
A realidade não é o Real.
O Imaginário, para Lacan, é a forma como vemos o mundo, como o produzimos. É o sistema que criamos para que a realidade se torne aceitável. Tem a ver com a forma como lemos a imagem do outro e como imaginamos nossa própria imagem, ou seja, como achamos que somos e como pensamos que nossas vidas funcionam dentro disso tudo a que chamamos mundo, ou seja, é o campo da alienação, das relações imaginárias, das identidades ou adversidades que criamos com o outro.
O Simbólico é a forma como codificamos esse Imaginário, os inúmeros discursos que criamos para descrevê-lo e as várias aproximações ou distanciamentos que fazemos do Real por meio dos discursos. Por exemplo, o parentesco e as relações edípicas, as narrativas míticas, as trocas econômicas e os discursos de poder e domínio, das relações de gênero e sexualidade.
O Real, por sua vez, não é a realidade, mas aquilo que é incognoscível, inominável, que não pode ser dito. É aquilo que temos que subtrair da realidade para que ela se apresente para nós como uma totalidade harmoniosa, unida e integrada, e que seja dotada de sentido. Fragmentos, portanto, que não fazem sentido. Por isso são abjetos e que se repetem para nós de forma incontrolável e sem causa aparente. Algo de impossível representação pois escapa do simbólico e do imaginário.
Por isso a clínica de cunho lacaniano consiste numa reacomodação dos aspectos simbólicos e imaginários num rearranjo de nossos limites comprimindo nossos impulsos narcísicos, nossa castração, ou seja, o Real.
É da imbricação borromiana dessas três dimensões que surgem os significantes, isto é, aquilo do Real que nos é sensível, que se manifesta no corpo, na fala, no chiste (humor) no sonho e que escapa da tentativa de manter uma narrativa coerente, ou seja, a fantasia, ou fantasmática. É o que vaza, o que não conseguiu ser contido, represado, ou seja, recalcado como diz Freud.
Livre-arbítrio e destino: quem quebra o vaso da Oráculo?
É comum ouvir alguém dizer que a vida é feita de escolhas, mas desde o primeiro de Matrix, os anteriormente irmãos e atuais irmãs Wachowiski, deixaram claro que não se trata de escolhas como costumeiramente acreditamos fazer, ou seja, escolhas conscientes. Como se pudéssemos refletir sobre um assunto, sopesar os dois lados da questão e então, como justeza, decidir sobre algo. Dito assim parece até que tudo tem sentido.
Na primeira visita de Neo ao Oráculo, ela lhe diz: “Não se preocupe com o vaso.” Ele então se vira para ver o vaso e o derruba da banqueta espatifando-o no chão. Ele pergunta como ela sabia sobre o vaso, mas ela diz: “O que vai mesmo queimar seus miolos é se você teria quebrado o vaso se eu não tivesse dito nada”.
O que está em jogo aí é a nossa liberdade ou não de escolha, o que no cristianismo é chamado Livre-arbítrio e da mesma forma a crença no Destino. Aquilo que se convencionou chamar, desde Aristóteles, causa eficiente, ou seja, quem gerou quem?
Tudo está traçado heteronomamente por um deus, ou somos nós mesmos que produzimos esse deus e lhe outorgamos nosso destino?
Baruch de Espinosa, filósofo seiscentista, disse que Deus é causa sui, ou seja, causa de si mesmo e a realidade é um devir. Para ele, modos são realidades segundas, derivadas da essência, ou seja, da substância. Assim como o conceito de triangulo possui diversas propriedades, a substância possui diversos modos. A substância é o que existe em si e por si tendo, portanto, existência. Ela é causa sui (causa de si mesma). Dessa forma, há somente uma substância, a divina, pois somente Deus preenche essa infinidade de atributos. A Substância é infinita (pois está constituída por uma infinidade de atributos), é eterna (pois sua existência é expressão da realidade intemporal de sua essência), é necessária (já que não é possível existência sem substância), é incondicionada (pois só depende de si mesma e nada existe sem que ela exista) (BERNAL, 2021).
Entre a substância e os modos estão os atributos, ou seja, aquilo que o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela (BERNAL, 2021). Eles existem na substância como sua expressão ou manifestação sendo, portanto, também infinitos, eternos e existentes.
Discordando do dualismo cartesiano, Espinosa diz que dos infinitos atributos da Substância, o homem somente pode conhecer dois, o pensamento e a extensão. O mundo é, portanto, um atributo divino e não uma criação da qual Deus não faça mais parte.
Seu primeiro axioma é: “Tudo o que existe, existe em si ou noutra coisa” e, se tudo que é em si é a substância, somos obrigados a concluir que todo o ser além daquela substância única fica reduzido à condição de “modo”, ou acidente daquela substância-Deus (BERNAL, 2021). Modos são, dessa forma, afecções ou impressões da substância, isto é, o que existe noutra coisa pela qual também é concebido. Sendo “em outro”, o modo não existiria sem aquilo do qual é modalidade, dependendo ontologicamente da substância. Há modos infinitos imediatos, modos infinitos mediatos e modos finitos sendo que os infinitos determinam os finitos. Este conjunto de modos constitui a Natura (Natureza)Naturada ou mundo e sendo este um efeito ou determinação de Deus, ele o chamará de Natura Naturans (Natureza Naturante) (BERNAL, 2021).
Movimento, repouso, vontade, intelecto ou amor não são, dessa forma, atribuíveis a Deus, mas apenas aos modos. Deus não é amor, embora o amor infinito esteja em Deus e o tenha como sua causa imanente. Deus determina a existir e agir de certo modo. O mundo varia de forma infinita, ainda que mantenha sua fisionomia (universo absolutamente extenso ou facies totius universii), para Deleuze, “o conjunto de todas as relações de movimento e repouso que regulam as determinações dos modos enquanto existentes”.
Mas se Deus é causa imanente, e não transitiva, de todas as coisas, não pode haver transcendência possível. Ele está integrado ao universo. Logo, o Homem que é um modo pode intuir Deus, mas não foi Ele quem o criou, não o ama, não o salva de perigos. É impessoal e indiferente ao movimento interior e exterior que se verifica no homem.
Quem quebra o vaso da Oráculo é o modo da substância afetado por seus atributos, isto é, a questão é que não importa se a Oráculo já sabia que o vaso se quebraria ou provocou sua quebra ao dizer que isso aconteceria, pois ambas as formas são modos possíveis.
Ressurections: escolhendo a pílula azul (ALERTA DE SPOILER! RECOMENDA-SE FORTEMENTE QUE VOCÊ ASSISTA AO ÚLTIMO FILME DA SÉRIE MATRIX ANTES DE CONTINUAR LENDO).
O quarto filme (Ressurrections, 2021) se inicia com um outro modo de construção das primeiras cenas do filme 1 (de 1999). O Hotel do Coração da Cidade é o mesmo (The Heart O’City Hotel), alguns personagens são os mesmos, as falas são as mesmas, mas os ângulos são diferentes, pois o observador é diferente. Quem vê não o faz sem se inserir na história, sem intervir na realidade a partir de seu lugar nela. Há uma repetição, ainda que haja ruído perceptível nas mudanças do modo. Há semelhanças, ainda que os sentidos mudem em função das expectativas iniciais.
Bugs vê as cenas que já lhe foram narradas, como num conto de fadas da infância. Ela conhece aquelas personagens e o que vão fazer, como se tivesse vivido inúmeras vezes em suas fantasias. Em dado momento ela entra na história. Intervém na produção dela. Não apenas sua tentativa de restaurar a ordem dos fatos a ela narrados (a fuga necessária de Trinity), mas sendo capturada por um Morpheus que agora é um agente da Matrix. Modos diversos de uma mesma substância.
Esses fragmentos ou significantes provocam no expectador um certo desconforto. O mesmo que em Bugs. Há algo fora do lugar nessa repetição e para o que não temos explicação. É como quando o sujeito analisante vêm à clínica dizendo: “isso sempre acontece comigo e eu não sei porquê”. Ele percebe as semelhanças no tipo de pessoas com quem se relaciona, nas formas como se coloca nessas relações, no modo como se deixa capturar pelas circunstâncias e que impulsionam à repetição, mas não consegue olhar a tudo isto de um ponto de visada no qual possa intuir algo sobre essas semelhanças.
Quem coloca Morpheus na história desta feita? É ele mesmo que se despluga da Matrix ao retirar os óculos e o fone de ouvido para falar com Bugs ou é ela quem revela a ele a existência de uma outra realidade (melhor seria dizer “modo”). Ele escolhe a pílula vermelha e a história começa.
Temos em seguida um encontro com Neo, ou melhor, Thomas A. Anderson que agora é um desenvolvedor de um jogo virtual mundialmente famoso chamado Matrix. Seu parceiro e patrão nessa empreitada é ninguém menos que o Sr. Smith (ainda que Hugo Weaveing não tenha aceitado fazer o filme). Neo é apenas o personagem autobiográfico[1] de Thomas no videogame. Uma espécie de avatar dele. Assim como no primeiro filme, ele começa a perceber mudanças na criptografia da Matrix. Há ruídos perceptíveis ou significantes que marcam a repetição e cuja causa ele desconhece.
Seu encontro com Trinity, agora Tiffany, se dá numa cafeteria chamada Simulatte (Simulação), porém ela é mãe de dois garotos e aparenta ser bem feliz com eles. Anderson sente que há algo que o conecta a ela, mas não sabe dizer o que é.
No escritório, do alto de uma torre onde se vê toda a cidade, ocorrem muitas discussões sobre o que seria e como renovar o jogo Matrix, por ordem de Smith. Os assessores desenvolvem diversas teorias (ou modos) do que seria Matrix: uma metáfora para a metamorfose trans (tese difundida entre nós em função da mudança de sexo das Wachowiski), uma afirmação do capitalismo pós-moderno, uma representação da luta de classes, um mero jogo como qualquer outro. Esse jogo de metalinguagem é genialmente usado por Lana Wachowski, diretora desse filme. É como se ela utilizasse tudo que se especulou sobre os filmes anteriores e sobre que rumos se daria à história do quarto filme para produzir a história do filme. Ela chega a dizer pela boca de Smith: “Nosso parceiro a Warner Bros, me disse que fará uma nova versão de Matrix quer participemos ou não. E eles podem efetivamente fazer isto”, ele diz a Thomas Anderson.
Para Lacan a metalinguagem não existe. Ela apenas cria possibilidades de modos de existência.
Se pensamos que a metafísica é a tentativa de tapar o furo da política e se admitimos, com Lacan, que cada qual tem sua metafísica ou sua ontologia, chegamos à ideia de que a metalinguagem seja ela tomada como conceitografia constituída ou como linguagem impregnada de formas de vida cotidianas é a resposta característica da perversão ordinária, esta servidão voluntária da subjetividade em estado de condomínio. Recusa (Verleugnung) da verdade e normalização do Real. (DUNKER, 2012)
Lana Wachowisk nos tenta confundir ao nos narrar todos os modos possíveis de origem do quarto filme. Pode ser ainda que nenhum desses enunciados seja aquele que determinou sua existência. Pode até mesmo ser que nem ela saiba a causa da criação do quarto filme e esteja a recusar a verdade reificando o Real.
A reinserção da história se dá por meio desses ruídos e repetições no quarto filme. Há semelhanças e distensões, antigas e novas referências. O coelho branco e o livro de Alice no País das Maravilhas e o cenário do hotel retornam, ainda que reconfigurados, misturados ao letreiro do cinema “Roots of the Evil”, Raizes do Mal, ou seja, o mau encontro, numa interpretação espinosana e “Deus Machina” no escritório de Smith, isto é, uma indicação de que ele, Smith, assumiu o papel anteriormente designado ao Arquiteto. É preciso lembrar que no final do terceiro filme Neo se entrega ao Deus ex Machina (deus surgido/fora da máquina) e se reconecta a ela sessando a guerra entre as máquinas e Zion, mas retomando seu combate com Smith que termina numa assimilação de Neo por Smith reconfigurando a Matrix. Isto faz todo o sentido no quarto filme que apresenta Neo retornando à sua identidade de Thomas Anderson e sendo controlado por Smith, o Deus Machina e pelo personagem do Analista, o Deus ex Machina que, se no terceiro filme tinha rosto de um bebê humano composto por pequenas máquinas voadoras, agora propõe a Thomas Anderson que todos os ruídos e memórias que ele sente e intui são fruto de sua imaginação, prescrevendo pílulas azuis para que ele se sinta mais confortável e aceite a realidade como ela se apresenta.
Smith tenta sempre investigar se Thomas continua tendo episódios de fuga da realidade, já que ele sente a todo tempo os ruídos dos vários modos da Matrix. Ora é seu reflexo no espelho que tem uma imagem completamente diferente daquela que ele imagina, ora são memórias de falas e vozes e personagens que reverberam em sua cabeça, ora é o gato do Analista que lhe faz lembrar da possibilidade de falha na Matrix.
Thomas tem medo de estar louco. O Analista lhe diz que não usa essa palavra em sua clínica. Este ponto tem especial interesse. Me parece que Lana sugere que há um certo tabu com a questão da loucura. Dar vazão às vozes em sua cabeça, deixar vazar suas memórias e significantes parecem ter um quê de rebeldia que deve ser contido para o bem do funcionamento do sistema. Thomas diz ao Analista que tudo que ele sente, vê e ouve parece real. Este confirma que de fato o são. Mas se são, por que não podem fazer parte de sua vida? Por que negar que a loucura possa ser um modo de lidar com o Real?
Tenho dito que numa sociedade baseada em vida comunitária na qual todo mundo sabe de tudo não caberia a psicanálise. Ela só serve a nós seres modernos que acreditam piamente que devem “dar conta” das coisas, de seus problemas (porque são só seus), seus dilemas e dúvidas.
Todos nós temos um Oráculo que é aquele lugar ou pessoa que diz o que precisamos ouvir. O meu sempre foi a Sessão da Tarde. Quando eu trabalhava de manhã e a noite em São Paulo, ia para casa na hora do almoço e dormia à tarde ou assistia a "Sessão da Tarde". Muitos filmes daqueles (alguns muito ruins) me deram pérolas do autoconhecimento. Um deles foi Crocodilo Dandee. Numa cena, a mulher que vai à Austrália fazer uma reportagem está num bar, o Bar do Joe. Ela está conversando com um homem e olha para seu relógio e pensando em voz alta diz: “Puxa meu relógio está com o horário de Nova Iorque ainda. Se eu estivesse lá estaria indo para o meu psicólogo”. O homem pergunta o que é isso. Ela, estranhando, esclarece que é alguém que é pago para nos ouvir sobre nossas questões e problemas e pergunta se não há psicólogos ali. Ele diz que não. Então ela pergunta o que eles fazem quando tem algum problema pessoal. Ele responde dizendo que eles contam para o Joe, o dono do bar. Ela pergunta se Joe é psicólogo, o homem diz que não. Ela pergunta o que Joe faz quando contam um de seus problemas a ele. O homem diz: “Ah ele conta pra todo mundo”.
As ideias de privacidade e de indivíduo são barreiras de contenção, de limite aos nossos modos. Quando são constituídas, instituem também uma necessidade deturpada de que a loucura não é desejável. De que é preciso que represemos nossos impulsos e desejos a modos limitados por forças coercitivas e impositivas, ditadas por códigos morais muito específicos. Não à toa a psicanálise se desenvolve num mundo e período de grande coerção psíquica da sexualidade feminina, por exemplo caracterizada na histeria. Nos períodos posteriores será a vez da depressão, da ansiedade e tantos modos de desdobramento da angústia básica resultante desse desajuste que a falta do outro nos faz.
Enquanto nos primeiros filmes de Matrix isto se representava pela necessidade de compreender as escolhas, já que elas já estavam feitas, no quarto filme o importante é perceber que toda escolha é uma ilusão, como diz Morpheus a Neo. Não apenas porque a decisão já está tomada, mas porque essa decisão é produto de um desejo, uma emoção. Algo que nos põe em movimento e que fará o que for preciso para que acreditemos que tomamos decisões conscientes, sopesadas e justas.
Projetamos um sistema de justiça baseada nessa ilusão. Um juiz deve julgar sem ser tendencioso. Ouvir as duas versões dos fatos, pesar as provas a favor e contra o réu para só então emitir uma sentença. Sabemos que isto é somente uma ilusão.
Se nos primeiros filmes a guerra era contra as máquinas, agora há máquinas sensientes que colaboram com os humanos. São biontes, possuem empatia e capacidade de aprendizagem. Afinal, tecnologias não são más em si. Tudo depende do uso que fazemos delas. O dilema proposto por Azimov em "Eu, Robô" segue sendo imaginado aqui: poderiam as máquinas, nossas crias, serem capazes de sentir? De se imaginar humanas? As máquinas nos primeiros filmes de Matrix apontavam para a dualidade representada pelo Arquiteto e a Oráculo, ou seja, Razão e Sentimento, respectivamente. Penso que o quarto filme nos aponta o dilema entre Ilusão e Realidade entendendo Ilusão como uma continuidade na repetição alienada, sem ouvir os sinais, os significantes e seus ruídos e asperezas. Sem perceber a loucura do Real. Por isso tomar as pílulas azuis que nos oferecem todos os dias quando assistimos TV, quando pagamos nossos impostos ou quando vamos ao Analista para nos adequarmos ao mundo conforme ele se nos apresenta.
No quarto filme há os “bots”, humanos facilmente tomados pela máquina e que se transformam em bombas (se jogam dos prédios) se isto for necessário para conter a mudança. Se em 1999 as máquinas eram o perigo, hoje os humanos também o são. Não é mais possível distingui-los pela sua aparência ou comportamento. O amigo de Thomas Anderson na grande corporação em que cria o videogame, Jude, é um bot usado para controlá-lo, assim como o Analista e Smith. A família feliz de Tiffany, da mesma forma é usada para impedir que assuma sua identidade, Trinity, e sua união com Neo, ainda que isso possa ter sido fruto de uma forma de feminismo desmedido por parte da diretora e dos roteiristas.
Trinity e a metáfora do coração
No primeiro filme, Trinity é a responsável pelo nascimento de Neo. É ela quem o encontra e lhe apresenta a Morpheus, o pai, o batista, que lhe anuncia e lhe mostra o deserto do Real. Ela carrega em si essa trindade: Pai, Filho e Espírito. É a própria ligação desses elementos. No final desse filme ela salva Neo por meio do coração, dizendo a ele que ele tem de ser o Escolhido, pois a Oráculo havia lhe dito que ela se apaixonaria por ele. No segundo filme é a vez de Neo salvar Trinity que se sacrifica para salvá-lo, porém ele não o faz por meio do sentimento, mas de uma “cirurgia” que realiza retirando uma bala alojada em seu coração e fazendo uma “massagem cardíaca”. No terceiro filme, ela morre com um pedaço de metal atravessado em seu coração ao pilotar a nave para que Neo possa acessar a Cidade das Máquinas.
O que precisa ser salvo nesse quarto filme é o próprio sentimento que une os dois. É a percepção de que a identidade de cada um depende de ambos. Por isso a nave que resgata Neo se chama Mnemosyne (Memória). É preciso que Neo recobre sua memória, mesmo que em flashes e fragmentos parciais (ruídos e significantes) para que ela possa também ser despertada de sua alienação. O papel de Trinity é agora central. É ela quem deve vencer sua descrença para empurrar sua limitação narcísica assumindo sua potência de agir.
Se para Espinosa a questão é como tornar as afecções (ou modos) em potência de agir, em potência de felicidade, perseverando em sua existência (conatus), então me parece que essa é a proposta de Lana Wachowiski. É claro que é sempre possível optar por uma leitura mais rasa e dizer que ela é uma mulher-trans-feminista-romântica que diz: “Só o Amor constrói”. Mas minha escolha (ainda que ilusória) é perseverar na possibilidade de que histórias como essa possam nos fazer pensar e nos colocar na condição de analistas de nós mesmos para que possamos nos autodeterminar.
Referências
BERNAL, César Colera - O conceito de Modos em Spinoza, REVISTA Conatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 1 - NÚMERO 2 - DEZEMBRO 2007.
CLAVURIER, Vincent - Real, simbólico, imaginário: da referência ao nó, Revista Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, 2013, disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372013000100015
DUNKER, Christian Ingo Lenz – Verdade e Metalinguagem em Lacan, Ágora, Rio de Janeiro, disponível em:
https://www.scielo.br/j/agora/a/jfkQynhRyS9RSY83GSMHqqQ/?lang=pt, 2012.
ESPINOSA, Baruch de - Ética, Abril Cultural, 1974.
[1] É importante lembrar que Neo é o anagrama de One (o Escolhido) e que Thomas Anderson contem em si aquele que se afirma O Filho do Homem (Ander-son), uma fala atribuída a Jesus, e o que nega essa possibilidade, o apóstolo Thomas (ou Thomé).
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