TUTTO CHIEDE SALVEZZA (Tudo Pede Salvação): desejo e loucura na estruturação do eu que é um outro.

 



Série dramática de Francesco Bruni (Netflix), baseada no livro homônimo de Danielle Mencarelli foi lançada no dia 14/10/2022 na plataforma de streaming e conta a história de um rapaz (Danielle – Federico Cesari) que acorda dentro de um hospital psiquiátrico sem se lembrar de como foi parar lá. Terá de ficar uma semana compulsoriamente internado e sendo acompanhado e avaliado pelos médicos.

Apesar de muita resistência inicial ao tratamento e da memória apagada após a balada na qual se lembra estar com os amigos bebendo e usando drogas, as memórias começam a retornar aos poucos. 

Também devagar ele vai se ambientando à rotina do hospital e aos internos, enfermeiros e médicos.

Ainda que o modo italiano de produzir cultura seja sempre trági-cômico, por vezes beirando um pastiche cristão, por outras com alta carga emocional e lírica, o roteiro abrange questões bastante interessantes no tocante à saúde mental, que me moveram a escrever esse texto.

O choque que Danielle sofre ao conhecer seus colegas de quarto é um deles. Gianlucca (Lorenzo Crea), um rapaz homoafetivo que rapidamente se interessa por ele e que confessa ter um Transtorno Bipolar em que, na “fase clara”, como ele diz, apresenta euforia e intensa libido sexual, enquanto na “fase escura” uma profunda tristeza. Com o tempo fica claro que grande parte desse sofrimento está relacionado à não aceitação de seu pai, um general do exército, à sua homossexualidade. Mario (Andrea Pennacchi), um professor primário que está há muitos anos no hospital, aparenta ser o mais calmo de todos ali. Cuida de todos e assessora os enfermeiros nesses cuidados. Danielle descobre depois a história trágica dele com a qual sonha frequentemente o que provoca gritos que acordam Danielle e reações violentas quando tentam acordá-lo. Maddoninno (Vicenzo Nemolato), que é um piromaníaco que só faz rezar para Ave Maria (daí seu apelido) e gemer. Alessandro (Alessandro Pacioni) cujo pai comparece todos os dias para alimentar, já que se encontra em estado catatônico sem que se saiba por quê. Mais tarde chega Giorgio (Lorenzo Renzi), um grandalhão que amedronta por sua aparência, mas que demonstra muita ingenuidade e infantilidade em função de um trauma sofrido na infância.

Da mesma forma, a equipe médica vai se tornando aos poucos menos hostil aos seus olhos. Pino (Ricky Memphis) é o enfermeiro do primeiro turno da manhã e apesar de seu jeito grosseiro, é generoso e uma espécie de informante de Danielle. É quem diz como as coisas funcionam.  Alessi (Flaure BB Kabore), uma enfermeira afrodescendente que inicialmente se mostra muito alienada e ausente de tudo que se passa no hospital, mas que com o tempo demonstra um profundo carinho por todos os internos. Já Rossana (Bianca Nappi) é a enfermeira do turno da noite e tem uma rixa antiga com Pino. Dottore Macino (Filippo Nigro) é um médico pouco gentil no trato com os pacientes. Sempre austero e seco, é bastante ríspido com Danielle, mas toca em temas profundos quando conversa com ele. Dottoressa Cimarolli (Raffaela Lebboroni) é uma médica afável e de trato suave com os pacientes, apesar de um discurso informativo e tecnicista.

A trama se completa com a cena em que Danielle presencia da chegada de Nina (Fotinì Peluso) numa noite, carregada numa maca com a mãe estriônica (Carolina Crescenti). Danielle a reconhece como sendo uma garota pela qual foi apaixonado no ensino médio e para quem escreveu um poema.

 

EU É UM OUTRO

Todo o enredo é construído entorno da poesia. Mario era leitor de Rimbaud que numa carta para seu professor escreveu a frase “Eu é um outro” (Je est un autre). Ao escrever esta frase, Rimbaud quebra uma regra gramatical da língua francesa (também do português) já que um pronome em primeira pessoa exige um verbo em primeira pessoa do singular, portanto, “Eu sou” e não “Eu é”, e isto produz um discurso diferente sobre este eu que ainda se projeta a “um outro”. Roland Barthes (1978) disse que a língua é fascista, pois não somente nos obriga a falar, como nos impõe um discurso cerceado por regras que tolhem, dessa forma, a liberdade.

Jacques Lacan torna-se psicanalista por meio de sua tese de doutorado sobre a Psicose Paranóide e suas Relações com a Personalidade (1932/1987), apresentando a discussão sobre o Estádio do Espelho, que aprofunda e encampa a ideia primordial freudiana do Complexo de Édipo. Na tese, Lacan narra o caso de Aimée, paciente dele que tentou esfaquear uma atriz famosa (Huguette ex-Duflos) por acreditar que esta a estava perseguindo e que tentaria assassinar seu filho. O que Lacan desenvolve é que havia algo na atriz que ameaçava Aimée e, a um só tempo, gerava admiração dela. Aimée via nela uma imagem de mulher livre e de poder social por meio de sua arte, mas ao mesmo tempo esta era uma posição inalcançável para ela. Há, desta maneira, uma relação entre elas (do ponto de vista de Aimée) que Lacan chamou de Amódio. Uma junção umbilical de Amor e Ódio. Ao atacar a atriz, Aimée quer atacar a si mesma, diz Lacan, não para eliminar seu ideal, mas para punir a si mesma por se sentir deslocada perante as leis sociais.

Há, portanto, um outro imediato (o pequeno outro, o ideal representado pela atriz para Aimée) e um outro metafórico (ou Grande Outro como diz Lacan) que lhe impõe uma punição por estar em desacordo com a Lei (FERREIRA, 2018).

Seres humanos são seres profundamente sociais. Sem a presença de outros seres humanos jamais se tornam como tal. Esse processo de produção do humano se dá por meio da socialização que se traduz em alienação e identificação. Alienação, pois estamos o tempo todo (e a vida inteira) imitando o outro, amarrados a ele, com sua essência fora de si, dependente e moldado por um outro (SAFATLE, 2017). Antes desse processo o que temos? O Isso (Id em alemão) freudiano que se caracteriza como um corpo libidinal polimorfo e inconsistente que tudo deseja e que vai se moldando à medida que sua socialização lhe impõe restrições e frustrações que produzem o Eu (Ego) e uma espécie de membrana semipermeável ou filtro que impede o vazamento e realização dos desejos, o Supereu (ou Superego).

A paranóia é apresentada por Lacan como uma condição para que o eu se estruture, já que a presença próxima do outro mimético gera uma confusão narcísica por ser invasiva demais e, de tal sorte, cria uma situação ambivalente entre admiração e ojeriza. Como se não houvesse distinção entre as partes. Mas é preciso que haja uma cisão que instaure o eu. Para Freud isto se dá no Complexo de Édipo, quando ocorre um deslocamento do olhar da figura da mãe para um outro lugar. Isto gera a pergunta: o que eu tinha e que não tenho mais para que o outro parasse de me desejar? É exatamente este pedaço “perdido” que passamos a procurar no outro para que ele nos ame. É assim, portanto, que nos tornamos livres para desejar sem um modelo que nos diga o que é esse desejo (FERREIRA, 2018).

Para o processo do Estádio do Espelho de Lacan, esta é a passagem de uma condição de Eu Ideal para o Ideal de Eu (DUNKER, 2022), isto é, enquanto ser mimético e indiferenciado da mãe (seu primeiro objeto de desejo) o eu imagina-se suficiente para todo o desejo da mãe e, portanto, bastante para eliminar qualquer outra coisa que possa desviar este desejo (Eu Ideal). Mas quando surge a figura do pai ocorre um processo de castração que obriga esse eu a perceber-se como faltante (instauraurando o desejo) e insuficiente para dar conta do desejo da mãe e será preciso uma aceitação de que não será possível “ter” a mãe para si em detrimento do pai. A criança, então, opera o início da construção do Ideal de Eu, a saber, ela pensa: o que devo ter de semelhante ao meu pai para que, no futuro, eu possa ter alguém semelhante à minha mãe?

A aceitação dessa castração configura a estruturação final do Estádio do Espelho, ou seja, quando o sujeito forma uma imagem de identificação de si a partir do espelho do outro. Um reconhecimento de si.

 

 

Bem, mas o que tudo isso tem a ver com Rimbaud e o Hospital Psiquiátrico?

 

O que percebemos em Danielle é um espanto com esse Outro, com essa outridade ou alteridade. É a descoberta de que nem tudo é como eu. Isto fica expresso no reencontro dele com seu ex-colega de escola numa recordação que tem numa conversa com os médicos. A condição em que esse colega se encontra é absolutamente outra daquela que Danielle esperaria dele, já que sofreu um acidente de carro. É quando ele começa perceber que o mundo/Outro não é ele e que, portanto, qualquer sentido que ele atribua a ele, não é o mundo/Outro, mas apenas uma construção que elaborou por meio da linguagem.

O que há de semelhante entre as personagens apresentadas nos 7 episódios da série e os poemas de Rimbaud e de Danielle é que “os poetas, os artistas e os loucos não se curvam” a esse Outro. Ou seja, não aceitam os dogmas e leis preestabelecidas pelo Outro, as transgridem, reescrevem e interpretam livremente, isto é, dão vazão aos desejos de uma forma que, para quem vive e adere à ação civilizatória, é visto como algo abominável e ruim, assim como eram os “loucos do hospício” para Danielle.

Porém, quando ele começa a perceber as semelhanças de seus próprios desejos e pensamentos com os deles, transformam-se em família (em pequeno outro, aqueles com quem converso e que são como eu). Desenvolve-se, assim, o afeto.

Isto é patente na relação de Danielle com seu par romântico, Nina. Ela não dispunha de afeto com nenhuma pessoa por conta de suas relações complicadas com a perda precoce do pai e a dominação da mãe e de seu empresário com quem tem uma total dependência psicológica e amorosa. Por isto ela não é capaz de reconhecer quando de fato é amada por Danielle pela primeira vez em sua vida. Tenta ainda lidar com ele como o faz com seus outros afetos, negando-os. Seu sofrimento já foi tão grande que qualquer ligação implicaria em mais sofrimento insuportável. Melhor, portanto, não se ligar. Ela padece num mundo de fantasmagoria da virtualidade no qual só a imagem importa, mas não consegue compreender que é possível recusá-lo e buscar livremente um novo desejo. É basicamente disto que se trata uma psicanálise, da abertura dessa possibilidade, do desvelamento de caminhos antes insuspeitos que passam a ser experimentados quando o sujeito está pronto para iniciar a jornada.

Foi o que ocorreu a Danielle quando redescobriu sua escrita. É nela que ele produzirá novos sentidos e desejos. Este é o presente que Mario lhe deu antes de se ressuscitar passarinho (alerta de spoiler), a possibilidade de renascer de outra forma, de ser original.

Sócrates era chamado exatamente assim “Original” (αρχικό - PLATÃO, 2010) que além de remeter à origem ou naturalidade, também traz a carga semântica de excêntrico, fora do eixo, fora das regras, criativo, que parece produzir-se pela primeira vez, não copiado. Numa palavra: louco.

Danielle é instigado em sonhos e delírios a encontrar a palavra que define seu desejo. Ele a define como Salvação. Para além das implicações religiosas que essa palavra carrega, há que se lembrar que é isto que ele deseja/encontra. Não necessariamente o que ocorre a todos os personagens da série, ou seja, é sua saída original para estruturar sentidos para sua vida.

 

 

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland - Aula, São Paulo, Cultrix, 1978.

BRUNI, Francesco – Tutto Chiede Salvezza, Itália, Série Original Netflix, 14/10/2022.

DUNKER, Christian Ingo Lenz – Falando nisso 256: Narcisismo, Édipo e estádio do espelho, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9kzhYVciHJg, 18/10/2022.

FERNANDES, André Hortélio - O Caso Aimée e a causalidade psíquica, Ágora, estudos em teoria psicanalítica, disponível em: https://www.scielo.br/j/agora/a/3Pw5rhncsh5DftT87rqhQHD/?lang=pt, Rio de Janeiro, Dezembro de 2001.

FERREIRA, Saulo Durso – Lacan do Zero: O eu é um outro, videoaula disponível em https://www.youtube.com/watch?v=SMQcLOeByYk, novembro de 2018.

LACAN, J. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade, Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1932/1987.

PLATÃO - Teeteto ou da ciência, Lisboa, Fundação Calouste Goulbenkian, disponível em: https://marcosfabionuva.files.wordpress.com/2011/08/teeteto.pdf, 2010.

SAFATLE, Vladmir – Introdução a Jacques Lacan, São Paulo, Autêntica, 2017.

 

 

Comentários

  1. Muito bacana! Vou assistir a série.

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  2. É impressionante como Danielle vê os outros como "loucos" sem perceber as próprias "loucuras" To na metade. Muito bom

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    1. Pois é, só se vê alguém como "louco" quando se desumaniza esse alguém. A posição de Danielle muda quando passa a vivenciar e compreender as diferentes possibilidades de ser humano.

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  3. Daniele ragazzo dotato di una grande sensibilita’e come lui anche i suoi amici di stanza “travolti” anche loro dalle fragilità della vita.

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