ESTADO TEOCRÁTICO NEOPENTECOSTAL NARCOTRAFICANTE BRASILEIRO


 Quando eu publico um post no Facebook com esse título muita gente acha que estou brincando. Mas estou a falar sério. Bem sério.

As origens.

O projeto de um Estado Teocrático no Brasil iniciou-se com o Regime da Ditadura Militar (sim, foi uma ditadura) quando os generais que se revezaram no poder do país, desde Castelo Branco até Figueiredo, utilizaram-se de pastores protestantes norteamericanos como Billy Graham para fazerem grandes “shows da fé” em estádios de futebol e outros lugares, ajudados por dinheiro público. Além disso, eles os carregavam em suas comitivas de visitação ao país todo sem nenhuma função aparente.

Geisel, por exemplo, frequentava a Igreja Evangélica de Confissão Luterana e por isso mesmo foi comemorado por lideranças religiosas ao ocupar o Palácio do Planalto.  

Exemplo é a publicação do jornal oficial da Igreja Presbiteriana, o Brasil Presbiteriano, de março-abril de 1974, que reproduziu parte de um boletim da Igreja Presbiteriana Nacional de Brasília: “Um homem probo, honesto, operoso e capaz, deixa o poder e assume o seu lugar outro homem público, com folha de serviço relevante e personalidade definida e, sobretudo isso, um crente evangélico.  […] Nossas orações a Deus para que seu governo seja uma benção para todos os brasileiros de todas as crenças. Adeus Presidente Médici, Benvindo Irmão Geisel”. Carta Capital - DIÁLOGOS DA FÉ - Ernesto Geisel, as igrejas evangélicas e a ditadura. Leia mais em https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/ernesto-geisel-as-igrejas-evangelicas-e-a-ditadura/.

 

 Mais que isso, os ditadores brasileiros criaram uma série de facilidades aos pregadores evangélicos norteamericanos para que estabelecessem vínculos e filiais de suas igrejas no Brasil.  Esses incentivos iam de isenção de impostos, doações de imóveis, feiras de livros e eventos gigantescos. Afinal, fazia todo sentido na conjuntura da Guerra Fria, que a cultura evangélica conservadora dos EUA se embrenhasse nas classes menos abastadas do país que aspirava ser importante na geopolítica global e aliado dos americanos. Esta aliança já se dava no alto escalão militar e com a elite empresarial do país, já que todo o Golpe de 64 havia sido arquitetado e implementado a partir do investimento e da orquestração desses atores.

O país vivia naquela época um grande crescimento da Teologia da Libertação católica que fazia crescer o engajamento dos campesinos nas lutas sociais e atraía discursos políticos como os de Jango que claramente se posicionavam a favor de uma reforma agrária e social no Brasil. Aliás, o estopim para a tomada do poder pelos militares foi um discurso inflamado de Jango em favor das minorias e da população do campo.

Segundo Angela Lahr da Universidade de Oxford (GONÇALVES, 2021), o medo de uma guerra atômica e a bipolaridade mundial favoreceram à implantação de um discurso dicotômico pautado na ideia de apocalipse, no qual os EUA eram identificados com o bem e a URSS com o mal. Este processo vinha sendo construído desde os anos 30 nos Estados Unidos, portanto, nada mais natural do que tentar implementar as pautas do “american way of life” nas mentes e corações dos brasileiros recém aliados na luta contra o “demônio do comunismo”.

O crescimento assustador das entidades fundamentalistas evangélicas nas décadas de 60 se deu por doações das entidades semelhantes norteamericanas e inglesas. A SBB, Sociedade Bíblica Brasileira é um dos exemplos. Além das doações diretas dos evangélicos estrangeiros, a SBB teve grande destaque em feiras de livros, contando com estandes muito bem escolhidos e em 1966 recebeu o título de Entidade Filantrópica. Desde aí, uma série de eventos se seguiram, promovidos pela SBB e contando com a participação de dirigentes do governo brasileiro, inclusive o Presidente Médici em 1970. É na sede doada para a SBB em 1972 pelo Governo Médici (um edifício de 10.000 metros quadrados com anfiteatro, escritórios, áreas de atendimento social e museu) em Brasília, que ocorre o encontro entre Geisel e o pastor Ernesto Bernhoef, membro do Conselho dos Pastores Evangélicos do Distrito Federal, em 1973. O pastor Bernhoef teve papel fundamental na difusa7o do evangelismo entre os oficiais militares ao se tornar a “companhia religiosa oficial” em viagens do alto escalão do poder do Estado Brasileiro.

A SBB tinha interesse direto na construção da Transamazônica que passou a atuar na região distribuindo roupas, remédios e bíblias, além de implantar programas de evangelização para a população local. Foi assim que o governo ditatorial militar fechou sua parceria com a principal entidade fundamentalista evangélica do país, aparelhada com dinheiro e metodologia norteamericana para conseguir furar o cerco de proteção ao modo de vida dos índios amazônicos. Esta ideia de evangelização e aculturamento dos índios vinha desde a era Vargas, com as tentivas de entrada da SIL – Summer Institute of Linguistics, mas era impedida pelo Serviço de Proteção ao Índio. Mas com o governo Médici a SIL conseguiu, em 1972, um programa de alfabetização baseado na bíblia e agora com apoio do governo e da recém criada FUNAI – Fundação Nacional do Índio. Houve muitas críticas de padres e missionários contra o tipo de evangelização e alfabetização que se estava fazendo com os índios da amazônia.

A inspiração.

Desde a década de 1940 o pastor midiático Billy Graham realizou no Brasil shows marcados pela pirotecnia e agressividade. Nos anos 60 e 70 ele criou shows e eventos que chamava de “Cruzadas” que visavam converter o maior número possível de fiéis ao evangelismo, sempre com apoio governamental. Esse tipo de atuação foi o que inspirou diversas congregações neopentecostais como a IURD - Igreja Universal do Reino de Deus, cujos líderes imitam o mesmo tipo de atuação histriônica e carismática. Graham chegou a ganhar o título de Cidadão Carioca pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Em sua visita de 1974 reuniu mais de 600 mil pessoas no Maracanã e foi recebido no aeroporto pelo governador do RJ e depois no Palácio do Planalto por Ernesto Geisel. Isto constitui um marco na aliança entre o governo ditatorial militar e o evangelismo norteamericano.

Aperfeiçoando e ampliando.

O neopentecostalismo brasileiro bebeu muito dessa fonte yankee, mas aperfeiçoou as técnicas de pregação e criou braços midiáticos e políticos nunca vistos em lugar algum do mundo. A proliferação de programas de televisão nos canais de TV aberta foi assombrosa nos anos 70 e 80, lembrando que esses canais são concessões públicas. O passo seguinte foi o início das aquisições dos próprios canais de TV e rádios. No que diz respeito ao espaço público das cidades, essas denominações passaram a arrematar cinemas falidos ou moribundos e transformá-los em templos de espetáculos de conversão em massa, batismos em piscinas, exorcismos de demônios identificados e enfrentados por pastores, numa catarse coletiva que faria qualquer etnólogo ficar embasbacado. Seus alvos preferidos sempre foram as religiões de matriz africana e o catolicismo. Em geral o que se faz é condenar a fé do outro demonizando seus cultos e rituais para, em seguida, recriá-los sob as bênçãos de seus pastores e bispos.

O segundo e mais importante passo, foi o investimento que essas denominações neopentecostais fizeram em líderes que despontassem e tivessem projeção suficiente para concorrerem a cargos públicos. Suas missões eram defender e implementar pautas de interesse das congregações evangélicas no cenário político de municípios, estados e nação. Em alguns anos surgia a Bancada da Bíblia no Congresso Nacional.

Hoje esta bancada não é composta apenas por evangélicos, embora sejam sua maioria, mas também católicos que defendem as mesmas pautas, principalmente aqueles do Movimento Carismático, que copiam o mesmo tipo performático dos neopentecostais em seus cultos católicos. Ela se alia fortemente ao chamado Centrão (grupo de partidos de centro e direita) e constitui uma das forças de poder dentro do congresso ao lado da Bancada Ruralista (de grandes produtores rurais) e Bancada da Bala (de defensores de armas de fogo).

Nos estados e cidades, estão intimamente ligadas às forças milicianas, ao tráfico de drogas e à polícia militar. Um caso exemplar é o que acontece no Complexo de Israel, um conjunto de favelas na zona norte do Rio de Janeiro. Seu nome foi inspirado na associação que os neopentecostalistas fazem entre o Estado de Israel e a fé cristã. Ainda que isso pareça estranho e contraditório, vale lembrar que vários líderes neopentecostais levam fiéis para serem batizados nas águas do Rio Jordão em Israel e Edir Macedo, líder da IURD usa uma espécie de manto nos cultos inspirado nas vestimentas dos rabinos judaicos. A bandeira de Israel se tornou símbolo da facção criminosa conhecida como TCP – Terceiro Comando Puro, liderada por Peixão (Álvaro Malaquias Santa Rosa) que prefere ser chamado de Arão em homenagem ao irmão de Moisés. Peixão mais alguns policiais e ex-policiais, atuais milicianos, lideram o Complexo de Israel e disputam seu poder com facções rivais. Na área de seu domínio forma proibidos cultos de religiões de matriz africana. 

Tá tudo dominado.

Este terceiro passo, penso seja o mais perigoso de todos. Cidades como o Rio de Janeiro que historicamente são literalmente governadas pelo tráfico de entorpecentes acabam tendo a grande maioria de sua população sob jugo de facínoras que dizem agir em nome de seu deus. Estes fazem acordos com o braço político do neopentecostalismo, que faz acordos com a polícia militar do estado. Fecha-se, assim, o cerco entorno dos reféns, em sua maioria, pobres, negros e mulheres. Da mesma forma que no Complexo de Israel, acumulam-se exemplos em diversas cidades e estados da federação.

O último passo.

A ascensão do neofascismo bolsonarista está diretamente associada a esse processo. Para verificar a veracidade disto, basta lembrarmos quais as bases de apoio e sustentação de suas campanhas eleitorais e que impedem até hoje seu impedimento legal, mesmo frente a todas as atrocidades cometidas. O chamado Escritório do Crime, uma quadrilha de matadores de aluguel que funciona na favela do Quitongo, dentro do Complexo de Israel, tem ligações com milicianos que são apontados por diversas denúncias (para as quais não há investigação adequada) de ter relações com a família do presidente da república e implicações no assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, cuja investigação foi estagnada pela troca do delegado encarregado do caso a mando da direção da Polícia Federal que havia sido trocada pela presidência.

Não é brincadeira.

Diante de tudo isso, não pode ser brincadeira quando afirmo que o que se está a construir nesse país é um Estado Teocrático Neopentecostal Narcotraficante Brasileiro. As associações são claras e não pode haver apenas coincidência nas intenções de governos ditatoriais militares, que viram uma oportunidade de subir novamente ao poder por via supostamente democrática e apoiados pelo neopentecostalismo e suas alianças obscuras com milicianos como este que hoje chefia o país numa política catastrófica diante da maior crise sanitária de nossa história com quase meio milhão de mortos no país. De fato, como ele mesmo declarou, sua especialidade é matar.

 

Referências

CARDOSO, Rodrigo – Os evangélicos e a ditadura militar, Isto é, 21/01/2016.

CARTA CAPITAL - DIÁLOGOS DA FÉ: Ernesto Geisel, as igrejas evangélicas e a ditadura. Leia mais em https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/ernesto-geisel-as-igrejas-evangelicas-e-a-ditadura/, 17 de maio de 2018.

GONÇALVES, Gabriel - Como a ditadura beneficiou a teologia reacionária de igrejas norte-americanas, Jacobin Brasil, 02/04/2021.

SOARES, Rafael - Traficantes evangélicos fecham pacto com milícia para expandir 'Complexo de Israel', Jornal Extra, 03/01/2021.

Comentários

  1. Riquíssimo texto! Conciso e capaz desvelar um percurso político brasileiro cheio de inflexões e Lobby, que expõe denúncia e alerta para o nosso povo. Esse texto devia ser distribuído para todos os canais e redes sociais. Parabéns, professor!!!

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    1. Obrigado, caro Welt! De fato é uma situação difícil que vivemos.

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  2. Esclarecedor e angustiante.

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    1. Obrigado, Marianinho! Quem diz estar bem com tudo isso não pode ser considerado normal.

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    2. Há quem diga que o Brasil é um conto de fadas, o que temos é uma estrutura colonial nos moldes contemporâneos que atua nos mais diversos segmentos a senhorita bira cansa de dizer isso e ela está certa quando afirma que não iremos vencer, pois tais estruturas de poder não serão destruídas facilmente e o que nos resta é engolir uma cartela de Rivotril, claro isso se houver a possibilidade de comprar uma, a realidade dói e dói muito.

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