A cristofobia real. O que causa medo no cristofascismo emergente?

 Nas últimas semanas têm crescido os protestos de grupos cristãos no Brasil, alegando que há uma emergência de perseguições a eles no país. Em geral sustentam tais afirmações por meio de reportagens e relatos de mortes de cristãos pelo mundo árabe ou em outros países.
Afirmam ainda que há um complô da imprensa brasileira para encobrir tais ataques religiosos.
Na maioria das vezes não há referencias claras de tais reportagens e nem se citam as fontes para checagem dos dados.
Essa suposta cristofobia vem sendo usada também por políticos, em sua maioria ligados à Bancada da Bíblia no Congresso Nacional e mais recentemente pelo Presidente da República, para gerar um clima de vitimização sobre si mesmos.
Do que se trata isso? Há mesmo uma aversão ao cristianismo crescendo no Brasil? 
Bem, para responder isso teremos de verificar as pesquisas sobre o número de cristãos no país, bem como os pertencentes a outras religiões e o ateus.
Segue aí uma tabela que montei com os dados do Censo 2010 do IBGE:

SEM RELIGIÃO 

15.335.510

Agnóstico

124.436

Ateu

615.096

Sem religião

14.595.979

BUDISMO 

243.966

CANDOMBLÉ 

167.363

CATÓLICA APOSTÓLICA BRASILEIRA 

560.781

CATÓLICA APOSTÓLICA ROMANA 

123.280.172

ESPÍRITA 

3.848.876

ESPIRITUALISTA 

61.739

EVANGÉLICA 

42.275.440

HINDUÍSMO 

5.675

IGREJA DE JESUS CRISTO DOS SANTOS DOS ÚLTIMOS DIAS

226.509

ISLAMISMO 

35.167

JUDAÍSMO 

107.329

NÃO DETERMINADA E MULTIPLO PERTENCIMENTO 

643.598

NOVAS RELIGIÕES ORIENTAIS 

155.951

TESTEMUNHAS DE JEOVÁ 

1.393.208

TRADIÇÕES ESOTÉRICAS 

74.013

TRADIÇÕES INDÍGENAS 

63.082

UMBANDA 

407.331

UMBANDA E CANDOMBLÉ 

588.797

OUTRAS DECLARAÇÕES DE RELIGIOSIDADES AFROBRASILEIRA 

14.103

OUTRAS RELIGIÕES ORIENTAIS 

9.675

OUTRAS RELIGIOSIDADES 

11.306

OUTRAS RELIGIOSIDADES CRISTÃS 

1.461.495

NÃO SABE 

196.099

Dados do IBGE (Censo 2010)
Numa conta rápida percebemos que os números acima deixam claro que mais de 85% da população brasileira se declara como pertencente a alguma forma de cristianismo, seja católico romano, católico brasileiro, evangélico, Testemunha de Jeová, Mormom (Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias) ou outras religiosidades cristãs. Isto se não incluirmos aí os Espíritas, Espiritualistas e Umbandistas que também declaram que suas religiões são cristãs. 
Claro que ao dizer isto arrumo uma briga com os umbandistas que me dirão que trata-se de uma religião de matriz africana que nada tem a ver com o cristianismo. Eu respondo dizendo que 1- existem vários tipos de umbandismo e muitos deles cultuam inclusive imagens de Jesus e os santos católicos,  já que trata-se de uma religião brasileira fruto do sincretismo entre a matriz Iorubá e o catolicismo português; 2- O dualismo bem e mal, característico da influência do maniqueísmo sobre o cristianismo, também está presente na Umbanda, ainda que formas dessa religião mis próximas do Candomblé e da matriz Iorubá não apresentem essa ideia tão presente.
Claro também que ao dizer isto haverá protestos de alguns cristãos dizendo que Umbanda é coisa do demônio e que eu devo ser filho de Satã. Eu respondo dizendo que 1- a própria ideia de um demônio como uma entidade que possa ser maléfica por excelência vai contra a origem desse conceito (do grego daemon) que nada mais é do que a própria ideia de espírito (sopro divino); 2- na maioria das vezes os cristãos execram os umbandistas por dois motivos: ou desconhecem o que seja e apenas ouviram outras pessoas dizerem mal da religião ou porque já foram umbandistas e se arrependeram por algum motivo; 3- me considerem filho do que você quiserem, não tenho problemas com isto.
Posto isto, se 85% da população (para somar por baixo) é cristã de alguma forma, não poderíamos ter um movimento religioso dissidente tão forte e capaz de gerar desconforto no status quo. Ademais se percebermos pelos dados que os que se declaram sem religião e supostamente poderiam ter algum benefício em atacar o cristianismo såo pouco mais de 5% da população brasileira. As outras religiões têm tido historicamente um convívio muito tranquilo no país para que precisassem fazer um levante anticristão.
Mas se não há cristofobia, por que o alarde?
Acontece que há, sim, uma fobia, um medo. 
O Neopentecostalismo se caracteriza pela adoção de uma ideologia moderna, a da teologia da properidade (ou Evangelho da Prosperidade) surgida nos Estados Unidos da América, que afirma que enriquecer e prosperar é uma forma de louvar a Deus e que dar parte dessa prosperidade à igreja é necessário. A salvação, para eles, também se dá por meio da graça, porém a forma de atingir essa graça não é aquela mesma do livro de Jó. Deus não escolhe aleatoriamente os que chama para a eternidade, mas sim aqueles que prosperam em todos os sentidos (físico, espiritual e financeira). Rapidamente cresceu nos EUA, mas encontrou um filão imenso a explorar no Brasil. 
A Teologia da Prosperidade funciona como uma espécie de resposta reversa à do catolicismo ao sofrimento dos pobres. Se na Teologia da Libertação católica a pobreza é uma virtude e aceitar essa condição é uma necessidade para receber a bemaventurança, no neopentecostalismo pode-se dar uma revanche contra aqueles que tornam as pessoas pobres e a "vingança" é exatamente enriquecer.
É por conta dessa lógica que lembrar os evangélicos que determinado pastor está enriquecendo às custas de seu dízimo não tem nenhum resultado. Tudo que ele dirá será: "se está enriquecendo é porque Deus assim o quer" e "eu estou fazendo a minha parte doando parte de meus ganhos à Igreja do Senhor, o pastor que faça a parte dele e depois acerte as contas com Deus".
O medo que cresce na sociedade brasileira e mundial é de que essa ética neopentecostal se propague a níveis alarmantes, pois dela decorre uma entrega absoluta ao capitalismo e dela advém a ideia de que não dilema moral em enriquecer, ainda que isto signifique que só enriquece aquele que explora outrem.
A fobia aumenta quando se percebe na postura moral dos seguidores da Teologia da Prosperidade que a determinação do modo de vida da sociedade deva ser conduzido de acordo com os preceitos que eles compreendem na Bíblia e nos ensinamentos de suas denominações eclesiásticas.  Decorre daí o crescimento de grupos de políticos que associam suas candidaturas a cargos públicos ao evangelismo e à defesa de muitos dos valores conservadores dessas igrejas. A Bancada da Bíblia (que nåo conta apenas com evangélicos) é evidente apoio ao governo do atual presidente e vê nele e em seu corpo de ministros uma resposta positiva aos seus desejos de impor ao Brasil uma moralidade cristã por eles determinada, constituindo o que eu venho chamando de Estado Teocrático Neopentecostal Narcotraficante Brasileiro. Sim, Estado Teocrático Neopentecostal, pois o que se advoga é que as leis do Estado sejam as próprias leis de seu deus (ou pelo menos a interpretação que eles fazem delas). Narcotraficante, pois ainda que o discurso dessas igrejas seja contrário às drogas, ele acaba funcionando como aquecedor da sensação de insegurança da sociedade. O mesmo se faz com relação à criminalidade. A disseminação da sensação de insegurança favorece aqueles que vendem uma ilusão de segurança e favorece a permissividade da violência policial e da repressão a grupos minoritários reivindicativos. Não à toa, muitos dos líderes religiosos neopentecostais se tornaram donos de potentes aparatos midiáticos como TVs e rádios. Por meio deles disseminam a ideia de que o único modo de combater a violência é com mais violência e de que algumas pessoas são "de bem" e outras estão fadadas a entrar no mundo do crime em função de suas "índoles ruins".
Mesmo dentro do catolicismo se vê crescer dissidências conservadoras nos moldes neopentecostais (caso da Opus Dei e da Renovação Carismática) que são aceitas pelo Vaticano numa tentativa de estancar a sangria de perda de fieis para o evangelismo.
O que se vê, numa análise sócio-política modesta, é um levante de cunho religioso contra o que eles consideram obra do Diabo, qual seja, a sociedade atual com sua suposta secularização e degeneração de costumes.
Não é a primeira vez que isto ocorre no mundo, mas por certo é a primeira vez que acontece no Brasil. Um país desde sua fundação erguido nas bases do catolicismo (também conservador).
Retomemos alguns dos aspectos fundamentais do fascismo para sabermos se o que estamos vendo crescer no Brasil atual pode ser chamado de cristofascismo.
1- Crença de que as pessoas são essencialmente diferentes umas das outras (daí decorre que algumas são boas e outras más), o que justifica a hierarquia social.
2- Crença de que a cultura atual é resultado de uma degeneração. As artes modernas e contemporâneas são vistas como  decadentes e promíscuas, devendo ser destruídas com a adoção de um ideal de arte e cultura a ser seguido.
3- Crença no autoritarismo e nas decisões centralizadas em torno de um líder como solução dos problemas políticos, econômicos e sociais.
4- Crença no nacionalismo exacerbado como forma de união da população.
5- Crença na possibilidade de uma ideologia anti-ideológica, dessa forma, tudo é visto como ideologia desde que não sejam as pautas defendidas por eles.
6- Uma cultura fundada no pensamento místico, o que justifica um Estado Teocrático.
7- Indivíduo e massa são uma única coisa e, por isso mesmo, o que destoa da maioria seja, física, política, cultural ou moralmente, deve ser eliminado e segregado.
8- Uma ética civil fundada na concepção de servir à nação com bravura e virilidade.
9- Um aparato policial que impede, controla e reprime a dissidência politica.
10- A defesa armada do regime.
11- Uma política externa inspirada na grandeza nacional e nas ambições imperialistas.
Naturalmente enquanto lia você ia associando algumas manchetes, memes, dados e discussões que teve com parentes e amigos às características elencadas. É claro que o fascismo pressupõe ainda outras coisas e não deveria, a princípio, ser tomado fora de seu contexto histórico. No entanto é inegável que algumas dessas características estão presentes nos dias atuais.
Não quero, com isto, afirmar categoricamente que o neopentecostalismo é fascista, mas quero sim dizer que muitas de suas características são semelhantes às do fascismo e que esse é o motivo do crescimento do medo em relação a essa forma de cristianismo que parece (para aqueles cristãos mais tradicionais) uma afronta  e uma deturpação da palavra do Evangelho.
Para além de quem esteja com a razão em sua forma de interpretar a Bíblia, já que por ser um livro escrito em versos é passível de inúmeras interpretações, a questão é como esses diferentes sistemas de crenças gera animosidade e insegurança.
Penso que o problema central seja a vontade de imposição cultural, própria do sistema fascista, de forjar uma sociedade idealizada e tiranizada, portanto, por uma percepção muito específica do que seja Deus.
Toda vez que seres humanos tentaram impor seus valores a outros seres humanos afogaram-se em sangue.
Valores não podem ser impostos. São modificados com a prática, não com discursos ou com a violência da imposição. É a vivência dos valores de um grupo e a repercussão do sucesso dessa vivência que gera difusão desses valores para outros grupos sociais. O cristianismo deveria saber disto, pois é uma experiência muito bem sucedida de disseminação cultural. Mas penso que a questão seja a pressa e a premência pela disputa de corações e mentes aliada à lógica do consumo (que é a base de sustentação da Teologia da Prosperidade), que fez equivaler não mais uma pessoa=um voto, mas uma pessoa=um dízimo.
Não há uma cristofobia, há uma guerra intestina que devorará ambos os lados.
O que menos importa nessa guerra é o que ela tem a ver com as ideias cristãs, pois cada lado dela acredita estar defendendo os preceitos de Cristo. Já vimos em outros momentos até onde isso pode ir. Espero estar enganado, mas infelizmente acredito que não estou.



 

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