Razão instrumental e isolamento em Ad Astra e na pandemia Covid-19
Essa noite assisti Ad Astra no avião. Eu tinha visto a chamada dessa ficção científica, mas não tinha conseguido assistir ainda.
Enquanto filme de ficção científica ele é bastante fraco, apesar do elenco muito bom (Donald Sutherland, Brad Pitt, Tommy Lee Jones, Liv Tyler, entre outros). O enredo é mais do mesmo: uma ameaça de destruição da Terra que vem do espaço e o herói tem de fazê-la parar. Ainda que a relação pai-filho esteja colocada e traga o filme um pouco para fora do clichê, ela é pouco aprofundada e bastante fria e superficial, não agregando carga dramática ao filme.
Por que estou escrevendo sobre ele se é tão ruim? Pergunta você.
Por que ele é uma obra de nosso tempo e reflete sobremaneira a situação de isolamento social a que estamos submetidos com todos os efeitos colaterais disto.
O filme começa com o herói fazendo uma avaliação psiquiátrica por um computador. Ele responde ao que o computador pergunta e este avalia os conteúdos vindos nas respostas, dando o resultado logo em seguida (que os psiquiatras não descubram esse aplicativo!).
Este processo se repete mais inúmeras vezes durante o filme.
Alias, o herói é herói porque consegue manter a calma e os padrões de batimentos cardíacos sem grandes alterações mesmo em situações muito tensas. É dessa forma que ele se qualifica para uma missão secreta em Marte.
Durante todo o filme o herói demonstra seu “sangue frio” que é sua principal “virtude”.
Isto se prolonga até que a questão se volte para seu pai. Aí fica impossível para ele não participar emocionalmente do processo. Claro que isso traz implicações embaraçosas que eu não vou revelar aqui para não dar spoiler, mas é preciso dizer que acreditando estar fazendo o bem e contribuindo com a missão, tudo “dá merda” por conta desse envolvimento emocional que o desqualifica para a missão.
Bem, o inferno é pavimentado com almas de boa vontade, dizem...
Estamos desde o começo do ano de 2020 em um processo de isolamento social que atinge de alguma forma a todas as pessoas ainda que com diferenças de camadas sociais, profissionais, econômicas e da própria decisão política de permanecer ou não em casa. Os efeitos disto começaram a aparecer logo nas primeiras semanas com as pessoas se queixando do distanciamento e dos problemas de convívio familiar, mas agravaram-se com o passar do tempo e trouxeram à superfície questões de fundo.
Tenho dito que a pandemia não criou processos novos do ponto de vista da psique, mas exacerbou e expôs os que já tínhamos conosco. Não levamos nada novo para dentro de casa, só o que já tínhamos conosco.
A questão é que poucas são as pessoas, especialmente no Brasil, que se ocupam em conhecerem-se a si próprias e se analisarem de alguma forma terápica. Há ainda muito preconceito por aqui com relação à saúde mental e, por isso mesmo, permanece uma sensação de que cada um deve dar conta de seus problemas relativos às questões psíquicas.
O filme reforça isto ao forjar um herói que permanece inalterado diante das calamidades e situações de potencial destrutivo e ao apresentar as avaliações psicológicas como um momento íntimo, individual e ao mesmo tempo tenso, pois dessa avaliação robótica depende seu futuro.
É exatamente dessa forma que a sociedade quer que pensemos e por conta desse pensamento que o preconceito e a invalidação do outro surge com relação à saúde mental. Os sofrimentos psíquicos e as doenças mentais não são vistas como algo natural e passível a qualquer um. Quando um sujeito expõe suas dificuldades há uma série de julgamentos que podem inviabilizar seu futuro, sua carreira, sua vida.
Embora o mocinho da história não julgue os erros cometidos por alguns de seus companheiros exatamente por questões emocionais (afinal ele é o mocinho...) ele mesmo apresenta tais questões e logo em seguida se culpa por isto enviando uma mensagem ao comando da missão relatando o que ocorreu. Fica evidente nesse momento a dificuldade de lidar com os próprios processos emocionais que ele julgava resolvidos ou sob controle.
Há apenas uma cena interessante com relação a isso quando ele começa a se lembrar da ex-esposa (ou namorada) e voltar a alimentar sensações de ternura e amor por ela, já que ele relata que a havia afastado de si por conta da periculosidade e necessidade de longos períodos de ausência que o trabalho como astronauta lhe impunha. Ou seja, a partir do enfrentamento da questão emocional com o pai, outras questões afloram num processo de elaboração analítico.
Mas sua insistência em fazer parte da missão apesar do resultado negativo do exame psicológico, demonstra sua dificuldade em aceitar que apresenta problemas. Algo corriqueiro para nós mortais que também não aceitamos facilmente tais dificuldades psíquicas, por isso as pessoas querem sempre buscar uma causa física para as disfunções que sentem como numa crise de ansiedade, num ataque de pânico, ou num surto de natureza psíquica. É mais fácil pensar que algo no corpo não vai bem, afinal o corpo é mesmo o palco de nossos maiores problemas, desejos e tormentas, diz a moralidade cristã. Quase todos os meus pacientes relatam que antes de procurarem apoio psíquico foram se consultar com cardiologistas, pneumologistas e clínicos gerais, ou então recorreram aos líderes religiosos e outras formas de compreensão espiritual (cartomantes, adivinhos, etc.). A causa nunca pode ser a mente.
A razão tem tamanho desejo de dominação (e esta é uma frase perigosa que não arriscaria proferir se não tivesse tratado dela com mais profundidade no meu doutorado[1]) que teme assumir qualquer responsabilidade sobre suas próprias questões, num processo de negação. Essa negação tem por base não apenas o preconceito que envolvem a saúde mental, mas a própria mente que acredita estar “no controle” do ser. Aí seria necessário definir mente, razão, consciente e inconsciente. Algo que não iremos fazer aqui.
No final do filme, que também não vou revelar, o herói rejeita o pai para recobrar sua sanidade. Ela lhe é mais cara, pois é sua maior virtude moral.
Me parece que nisso também guardamos alguma semelhança social. A noção de indivíduo que foi instilada em nós na Modernidade imprimiu em nossas mentes uma necessidade irrevogável, ainda que falsa, de que somos únicos e indivisíveis. Penso que a grande contribuição de Freud e seus seguidores tenha sido a de mostrar que somos comuns, pois padecemos de coisas muito semelhantes, ainda que de formas e por caminhos diferentes, por isso cada análise é única, mas guarda semelhanças e sintomas compartilhados por todos, e também que somos fendidos. Precisamos do outro inexoravelmente. Não há como tornar-se humano sem o espelho e a troca com o outro.
Como disse, o filme reforça a ideia de que cada um deve resolver-se a si mesmo ao colocar o herói tendo que lidar com seus próprios problemas e julgamento da razão utilitária, representada pelo computador que emite pareceres psicológicos. Nesse sentido ele se aproxima de Blade Runner de Ridley Scott (de 1984, este sim um grande filme). Os androides (replicantes) eram considerados imperfeitos e revelavam-se como tal quando eram questionados por perguntas que evocavam respostas emocionais, mesmo que eles fossem mais perfeitos que qualquer ser humano, ainda eram “rebaixados” por não conseguirem lidar com as emoções.
Na pandemia temos enfrentado o mesmo isolamento social dos astronautas (alguns de nós e guardadas as devidas proporções), por isso urge que cuidemos de nossas mentes para que consigamos completar a missão. Porém penso que na contramão do que o filme sustenta. Precisamos do outro. Se não é possível fisicamente, que seja virtualmente. Precisamos partilhar nossos sofrimentos. Quando falamos nos aliviamos e quando escutamos percebemos que não sofremos sozinhos e isso também traz alívio.
As taxas de crescimento da procura por atendimento psíquico de alguma espécie são assustadoras, mesmo que os números não correspondam à realidade de pessoas com dificuldades e algum tipo de sofrimento psíquico. Infelizmente não podemos contar com apoios, campanhas ou políticas públicas de saúde mental. Ao contrário, o governo sinaliza recentemente que pretende resgatar a ideia de afastar as pessoas com algum tipo de problema psíquico ou deficiência mental do convívio social. Tudo que a luta antimanicomial tem buscado extinguir desde os anos 80 por perceber que internações compulsórias, medicações desnecessárias e isolamento faz mais mal do que bem a essas pessoas e também à sociedade como um todo que continua com seus preconceitos e imaginando heróis frios e calculistas que não se envolvem e suportam isolamento físico e mental. Não por mera coincidência, o mesmo perfil das grandes corporações[2] empresariais que comandam a economia atual gerando externalidades para outrem, quebrando regras e agindo em desacordo com a legislação vigente quando pagar multas e sofrer processos judiciais se mostra mais vantajoso do que cumprir as leis, demonstrar dificuldades em manter relações duradouras, já que mudam-se de lugar conforme as questões sociais e econômicas as favoreçam, mentem para obter lucros e vantagens.
[1] GAFFO, L. De Ulisses a Frankenstein ou do confronto coma natureza exterior à dominação da natureza interior. Globus, São Paulo, 2015.
[2] Quem não viu não pode deixar de ver o documentário A Corporação que traça esse perfil psicológico das corporações e mostra com detalhados exemplos como elas são psicóticas embora eu pense que elas têm mais a ver com a perversidade.
Exatamente isso.
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