Aproximações entre as estruturas do Ato Falho e o Ato Psicanalítico

  



                                                            Charge retirada de Ricardo Goldenberg

                                                            Disponível em: https://ricardogoldenberg.com.br/tag/ato-falho/

 

 

Num ato falho há uma espécie de vazamento de produto do inconsciente direcionado àquele que escuta.

Ele não é um erro nem uma produção individual propriamente dita. Nem é causado por algum tipo de distúrbio neuronal ou de limitação da linguagem, mas uma mensagem cifrada ao outro. Nesse sentido é um processo social, como diz Freud acerca do Chiste (DUNKER, 2022). 

É preciso, portanto, que eu receba do outro a minha própria mensagem (meu equívoco aparentemente involuntário) de maneira invertida para que se configure um ato falho.

 

 

 


                                                Frame retirado de Christian Dunker – Fanlando nIsso 123

                                                Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jq-nvYUFdnw

 

A estrutura assim montada por Lacan (apud DUNKER, 2022) no Seminário 2 e conhecida como esquema da fala ou esquema lâmbida, no qual o sujeito (S) fala para o outro (a) e se escuta desde a sua posição como moi/eu (a’), cuja mensagem chega ao grande outro (A) ou seja, o lugar do significante e do simbólico, onde acontece uma inversão que se torna uma mensagem devolvida para o sujeito (S).

Dessa forma, há uma resistência imaginária entre (a) e (a’) que busca perseverar no compartilhamento do sentido e na diagonal oposta (A/S) o desejo inconsciente, isto é, o desejo de revelar um outro sentido.

A estrutura da clínica psicanalítica mantém essa forma, no sentido de que é uma comunicação que envolve o desejo de cada um dos participantes, ainda que, obviamente, os desejos sejam outros já que a clínica envolve de forma mais imbricada a transferência, o desejo do analista, e a interpretação.

 



                                          Retirado de Adriane de Freitas Barroso

                                          Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692015000100007

 

De toda sorte, me parece que a questão fundamental em comum no ato falho e na clínica psicanalítica é o “vazamento involuntário” desses conteúdos do inconsciente que comunicam desejos. Seja no sonho, na fala, na postura, no gestual, na vestimenta, na escolha das palavras a dar sentido ao que se sente ou mesmo no próprio chiste direcionado ao analista. Há um desejo de dizer, de revelar, que é comum aos dois casos. Esse desejo de dizer não a qualquer um, mas a um outro. Uma maneira de abrir-se, sem que as rédeas da consciência assumam o controle e freiem esse impulso. Um rasgo no tecido do casulo que construímos e que nos apertam tanto a ponto de buscar um analista como forma de saída. Por isso a angústia é o sentimento basal da análise, já que a paralisia que ela provoca torna-se insuportável e o sujeito se incapacita a continuar se movendo sozinho.

O ofício do analista se inicia com sua presença, pois a partir dela o sujeito identifica o destinatário de sua mensagem. O analista opera por cortes para abrir espaços nos quais o analisante vislumbre a possibilidade de mover-se, de encontrar veios que canalizem sua libido em direções diferentes das que o levaram ao ponto imóvel onde está.

No fazer da clínica psicanalítica, o analista percebe e marca os significantes da fala do sujeito. Os significantes são as asperezas do discurso dele que advém do inconsciente. Poderíamos dizer que eles são o próprio discurso do inconsciente que se infiltra nos interstícios do discurso do sujeito em função do desejo de dizer.

A escuta psicanalítica deve focar exatamente nesses significantes provocando, vez ou outra, por meio da devolução desse conteúdo ao sujeito, uma reflexão que dá sentido/significado ao significante. Por vezes é uma palavra ou situação específica que se repete, uma forma de se colocar do analisando frente aos conflitos e relacionamentos dele, uma maneira de analisar e pensar as coisas e o mundo, um ato falho, uma piada/chiste ou qualquer outra referência que o analista perceba como marca, como inscrição inconsciente dentro do discurso consciente.

Da mesma forma, o Ato Psicanalítico constitui uma intervenção proposital do analista no discurso do sujeito, um corte profundo. Ele pode se dar por meio do corte da fala, do tempo, da sessão, de um gesto ou fala do psicanalista em direção ao sujeito analisante. O filme Um Encontro com Lacan (Rendez Vous Chez Lacan - Miller, 2011), apresenta um depoimento de uma analisanda de Lacan que foi vítima do nazismo. Ela conta um sonho em que a Gestapo (polícia política de Hitler) vinha ao seu gueto às 05:00 da manhã para captura-la, como era comum nos guetos judeus ao levá-los aos campos de concentração. Isto, claro, lhe causou muito sofrimento e perturbação. A certo ponto de sua fala para Lacan, este se levanta repentinamente de sua poltrona e passa sua mão suavemente em seu rosto e diz “geste à peau” (gesto/carinho na pele em francês, cuja pronúncia se assemelha a Gestapo), realizando assim um ato analítico que dá significado e sentido diverso ao significante “Gestapo”.

Perceba que esse corte profundo na narrativa do sofrimento da analisante busca promover um outro significado, uma outra forma de encarar aquilo que lhe causa dor. Ela diz que, obviamente isto não lhe retirou do sofrimento promovido por anos de perseguição nazista, mas oferece um contraponto importante isto. Um rasgo na couraça de seu casulo alinhavado por tantos anos presa a esse sofrimento. Uma outra possibilidade de olhar para si e sua condição.

Freud dizia que podemos levar nossos pacientes até a beira do rio, mas cabe a eles decidirem atravessá-lo. Um ato analítico pode ter esse objetivo.

 

 

 

 

Referências

BARROSO, A. de F. - Lacan: entre linguagem e pulsão, por uma psicanálise do sujeito, in Revista Subjetividade, vol.15 no.1 Fortaleza abr. 2015, disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692015000100007

DUNKER, C. I. L. - Auto corretor vale como ato falho? | Falando nIsso 123, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jq-nvYUFdnw

GOLDENBERG, R. – Ato Falho, Froidixplica (Freudian Slip), disponível em: https://ricardogoldenberg.com.br/tag/ato-falho/

MILLER, Gerard – Rendez-vous chez Lacan (Um Encontro com Lacan), documentário, 2011, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9Xvfb8mpp18

 

 

 

 

 




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