Lacan enquanto promotor de mudanças na psicanálise de seu tempo

Trabalho apresentado como discussão final da disciplina do Prof. Dr. Leandro dos Santos no curso de Pós-graduação em Clínica Psicanalítica Lacaniana no Instituto Superior de Ensino em Psicologia e Educação



Lacan trouxe para a psicanálise um aporte teórico baseado na linguística e no estruturalismo, mas muito além disto foi precursor de mudanças na prática psicanalítica questionando, ampliando e aprofundando conceitos freudianos fundamentais. Seu aspecto inovador reside no fato de ele perguntar o porquê de determinadas posturas e fazeres.

Freud, com justiça, foi o pai da psicanálise e representou essa figura paterna até sua morte em 1939. Como toda família comandada por um patriarca ou uma matriarca, sempre houve questões intestinas que ficavam represadas ou que eram dirimidas por ação dessa liderança.

Nos primórdios da criação da teoria psicanalítica, muitos pesquisadores se reuniram no entorno de Freud e colaboraram no seu desenvolvimento e é natural que nesse início houvesse um esforço de constituição do alicerce desta teoria e um consequente abafamento dos questionamentos internos.

No entanto, elas sempre existiram e ficam claras, por exemplo, nos episódios ocorridos com Adler e Jung. Jung foi o primeiro presidente da sociedade psicanalítica em função da vontade de Freud em demonstrar que a psicanálise não se tratava de uma ciência judaica, já que ele era suíço e cristão, além do reconhecimento do próprio Freud de que Jung tinha um papel fundamental nas investigações psicanalíticas com seus aportes teóricos, notadamente no estudo dos sonhos e da noção de inconsciente. Jung colaborou com Freud no caso de Adler (DRESSER, 2018) que desde o início apresentava discordâncias sobre a importância dada por Freud à sexualidade e seus traumas, além de centrar seus estudos numa questão biológica e, a um só tempo, cultural e social. Isto culminou com o desligamento de Adler da recém fundada IPA - Associação Internacional de Psicanálise (FEBRAPSI, 2022).

Porém já desde a viagem de Freud e Jung para os Estados Unidos da América em 1909, também se avolumavam problemas entre os dois. A própria escolha de Freud que Jung se tornasse o primeiro presidente da IPA também fez crescer as animosidades internas do grupo. De fato, Jung foi muito importante na fundamentação inicial da psicanálise a partir de suas pesquisas, mas as divergências entre os dois foram se tornando insustentáveis. Jung, assim como vários outros colaboradores da psicanálise inicial, tinha muitas dúvidas sobre a sexualidade ser o motor de todo o dinamismo psíquico, como queria Freud. Em 1912, ambos voltam seu olhar para a questão religiosa que, para Freud era uma espécie de distração cuja causa fundamental era a libido e pulsão sexual, enquanto Jung defendia uma abordagem mais respeitosa sobre o tema. Freud temia que a criação protestante de Jung o impedisse de ver isto de outra forma. O resultado foi o rompimento definitivo entre os dois (DRESSER, 2018).

Da mesma forma, com o adoecimento de Freud e sua morte iminente, inicia-se um processo interno de disputas. Entra em jogo Anna Freud que, como legítima herdeira do pai, buscava assegurar que nada mudasse. Porém ela não era tão bem aceita no grupo seja pela sua formação (era pedagoga), seja pelas suas posições teóricas (notadamente as funções do Ego e a ideia de mecanismos de defesa). Ela centrou seus estudos na psicanálise de crianças, contribuindo muito com o aprofundamento das pesquisas do pai nesse campo que se baseavam apenas nas lembranças de seus pacientes adultos sobre a fase da infância. Entretanto, ela iniciou uma disputa com Melanie Klein que também pesquisava crianças e que assumiu posições diferentes das de Anna. 

É nesse período que o esgarçamento das relações entre os psicanalistas da IPA toma formas mais expressivas e, com a morte da figura paterna, acaba por criar três núcleos dissidentes.

As teorias de Anna Freud foram muito bem aceitas nos Estados Unidos em função dos interesses da indústria farmacêutica emergente. Centrar as discussões entorno do Ego facilitava a ideia de intervenções medicamentosas para que esse Eu “funcionasse” melhor. Klein, por sua vez, deu prosseguimento à escola inglesa de psicanálise, enquanto Winnicot e alguns outros tentavam manter uma espécie de “terceira via”. O que havia em comum a todos eles era o fato de se considerarem herdeiros do real pensamento freudiano e a tentativa de manutenção de um poder sobre a formação dos futuros psicanalistas. O que nenhum deles conseguiu perceber é que, com a morte do patriarca, as mudanças na família eram inevitáveis e que seria necessário reinterpretar o freudismo e própria psicanálise.

Quando Lacan apresentou sua tese de doutorado em 1932 e a proposição do estádio do espelho nos anos seguintes, começou a se tornar um estudioso da psicanálise arrebanhando muitos seguidores. O início dos seminários nos anos 1950 aprofunda inovações na teoria psicanalítica que passam não apenas por revisões, torções, questionamentos e aprofundamentos teóricos, como também de ordem prática da clínica. Dessa forma, o tempo da sessão é questionado e deixa de ser algo sustentado apenas por um tabu freudiano, passando a ser pensado a partir da lógica da própria sessão. A ideia de corte está aí impressa e passa a ser uma forma de intervenção fundamental no fazer do psicanalista. Da mesma forma o valor da sessão toma contornos psíquicos e não meramente econômicos como antes. Os cortes passam a fazer parte do processo interpretativo da parceria psicanalítica entre analista e analisando, reconfigurando também esta relação que deixa de se embasar numa dependência do segundo em relação ao primeiro. Dessa forma, o conceito de transferência também passou por profunda revitalização.

Tais inovações e ressignificações se tornam por demais aviltantes ao antigo modelo centrado na figura do analista, mas o que provocou forte momento de ruptura foi a mudança nos processos de transmissão da psicanálise. Em que pese o fato de que o próprio Freud tivesse cautela sobre o ensinamento da psicanálise nas universidades, Lacan vai reforçar que é na clínica e apenas nela que sua aprendizagem pode se dar. Não é possível, portanto, um curso de formação em psicanálise nos moldes dos cursos universitários, nos quais o saber é visto como algo possível de ser apreendido em níveis teóricos e onde a prática é algo apenas laboratorial.

É de suma importância notar que o retorno a Freud promovido por Lacan é de fato uma proposição de retomar aquilo que o pai deixou como legado a ser vivenciado pelos psicanalistas e que é por isto mesmo que Lacan enfrenta adversários tão combativos nesse processo. Interpretar o que foi deixado por ele e construir novas teorias a partir dele é a ideia de Lacan e não deixa de ser a dos outros freudianos. Porém me parece haver uma diferença fundamental. Lacan não conheceu Freud pessoalmente e talvez isto tenha efeitos na sua forma pouco ortodoxa de reler sua obra. Aos outros que participaram de todo o processo de construção da base da psicanálise talvez haja um peso excessivo da forma de pensar do patriarca que não permite grandes mudanças ao que foi estabelecido. Junte-se a isto o fato de que estes psicanalistas tradicionais estavam de certa forma confortáveis com a situação em que tudo se constituía naquele momento enquanto Lacan tenta exatamente desacomodar os aspectos instituídos.

Penso que a psicanálise, assim como todas as ciências, é dinâmica e deve corresponder ao seu tempo e espaço. Dessa forma, no Brasil contemporâneo a psicanálise tem desafios a realizar. Sua popularização num país com tantas desigualdades como o nosso é uma questão a ser discutida para que os psicanalistas possam apontar caminhos para equacioná-la e já existem muitos grupos preocupados com ela e oferecendo experiências muito interessantes que podem ser transmitidas e ampliadas. Da mesma forma, nosso país tem ainda muito preconceito com relação à saúde mental e os psicanalistas devem se ocupar desse movimento que vem desde a reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial. Temos ferramentas importantes que podem e devem somar forças nessa questão. Também existem preconceitos contra os psicanalistas que constitui um desafio importante. Tenho notado psicólogos que tratam a psicanálise de forma desdenhosa em função de ela não ter uma transmissão do tipo universitária. Estes imaginam que um diploma na parede é suficiente e melhor do que anos de experiência prática e autoanálise, além de estudo e supervisão, para tratar de questões da saúde mental.  De fato, parece haver uma espécie de “disputa de mercado”, mas não sem razão. Nos últimos anos houve uma proliferação da oferta de cursos de formação em psicanálise que prometem certificados, carteirinhas e algum tipo de respaldo técnico, no entanto, nem todos possuem carga horária e propostas de formação que garantam o tripé (análise, teoria e clínica/supervisão) preconizado por Freud como forma de transmissão da psicanálise. Isto decorre, em grande medida, da não existência de órgãos reguladores de nossa profissão, até por sua especificidade. Enfrentar essa questão é algo que teremos de fazer se quisermos que abusos não sejam cometidos e que sejamos respeitados enquanto profissionais. Disto decorre também uma série de disputas e problemas entre os próprios psicanalistas. Desafio ainda maior, pois envolve a necessidade de os psicanalistas olharem para si mesmos e suas práticas.

Um exemplo desta questão é o crescente uso de tecnologias digitais nos atendimentos psicanalíticos, algo que já vinha sendo discutido com muita controvérsia e que a pandemia fez se precipitar de forma avassaladora com resultados surpreendentes, desmistificando antigos posicionamentos que constituíam forte resistência à inovação.

Inovar é sempre contestar posições que não têm mais fundamento (ainda que possam ter tido fundamento em algum momento histórico) e isto gera muito incômodo naquelas pessoas que se amarram numa forma de fazer as coisas ou porque não veem outra forma de fazê-la ou porque se beneficiam com ela.

Lacan nos deu o exemplo de que é possível e importante que inovemos e que trilhemos o caminho menos batido. Seu retorno a Freud não é, em nenhum momento, algo fixo ou retrógrado, mas um mergulho em suas obras para embeber-se de teoria e conceitos com o propósito de criar. Só é possível criar quando não nos sentimos presos ou engessados em formas que nos inibem a curiosidade e experimentação.

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências

 

DRESSER, Sam. Freud versus Jung: disputa amarga sobre o significado do sexo, Nexo, 2018, disponível em:https://www.nexojornal.com.br/externo/2018/11/24/Freud-versus-Jung-disputa-amarga-sobre-o-significado-do-sexo, 29/04/2022.

FEBRAPSI. Adler, disponível em: https://febrapsi.org/publicacoes/biografias/alfred-adler/, 29/04/2022.

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