Relações entre psicanálise e o livro “O Jardim Secreto” de Frances Hodgson Burnett (1911)



 

Mary, Mary cara feia!

Como vai o seu jardim?

Tem canteiros, tem areia, 

Tem campainha e jasmim. (página 96)

 

O livro “O Jardim Secreto” foi publicado em 1911 por Frances Hodgson Burnett. Destinado ao público infantil ele conta a história de Mary Lennox, uma garota nascida na índia, mas de pais ingleses que fica órfã por conta de uma epidemia de cólera e é obrigada a ir para o interior da Inglaterra viver na mansão imensa de seu tio que ele nem conhece. Muito mimada, acaba sofrendo muito no processo de mudança e com a necessidade de aprender a fazer coisas por si mesma.

Depois de algum tempo de adaptação na mansão, conhece seu primo Colin, ainda mais mimado do que ela e temido por todos os empregados da casa. Em contraste a isto, conhece a empregada Martha que lhe ajuda no processo de aprendizagem de realizar suas necessidades (como vestir-se e calçar-se) e seu irmão Dickon, um menino muito livre, esperto e ligado à natureza que lhe apresenta um mundo muito mais amplo do que o que ela conhecia.

A mansão fica na região inglesa da charneca, de clima mais árido e frio, com vegetação herbácea e arbustiva constituída de espécies xerófitas e robustas, mais resistentes a essas condições.

Trata-se de um clássico da literatura inglesa com diversas adaptações para o cinema, sendo a primeira de 1919. A autora tem mais duas obras do mesmo gênero que também são considerados clássicas: “A Princesinha” (1905) e “O Pequeno Lorde” (1886) e cuja temática é muito semelhante.

Li esse romance para minha filha mais velha, Anahy, que hoje tem 10 anos. Líamos um capítulo por noite quando ela ainda não sabia ler (por volta dos 5 a 6 anos). Mais tarde ela releu sozinha o livro e escolheu um livro para colorir que tinha desenhos baseados na história.

Quando o Prof. Dr. Carlos Mário Alvarez fez, na sua disciplina do Curso de Pós-graduação em Clínica Psicanalítica Lacaniana do Instituto de Ensino Superior de Psicologia e Educação, uma analogia entre a psicanálise e a jardinagem, apareceram-me imediatamente as ideias retratadas no livro. A de que a psicanálise trata de abrir espaços para que brotem novas coisas é até mesmo literal no livro quando Dickon, Mary e Colin iniciam o processo de visitar escondidos o jardim, que era proibido a eles, e abrem sulcos na terra para que as plantas que pareciam mortas pudessem rebrotar. Em alguns dias as flores começam a surgir o jardim se torna um belo lugar no qual Colin consegue dar seus primeiros passos (ele era paralítico pela ausência de atividades desde pequeno).

Toda a narrativa do livro fala do processo de transformação de seus personagens a partir do momento em que entram em contato com a natureza, a sua natureza, ou seja, a partir do momento em que iniciam um processo de autoconhecimento e conhecimento de seus reais desejos. Livres de suas vontades e quereres que eram colocados à frente como imperativos para que não formulassem os desejos verdadeiros. O resultado é a mudança das formas como vão se relacionando com as outras pessoas, retirando-as da posição de submissão objetal e tornando-as sujeitos que também têm desejos legítimos.

- Você é um poço de egoísmo! - gritou Colin.

- Ah, sou? E você? – gritou Mary. – Gente egoísta é que diz isso. Chama de egoísta todo mundo que não faz o que eles querem. Você é muito mais egoísta que eu. É o menino mais egoísta que já vi na vida! (página 146)

 

É diante da crueza da realidade da vida da família de Martha e Dickon, que vivem em absoluta miséria, que Mary começa a perceber que sua vida cercada de serviçais submissos, mas sem cuidado afetivo com ela é profundamente sem sentido e a priva de abrir-se ao conhecimento de suas limitações e potencialidades. É na forma com que Dickon vê a natureza e se relaciona com ela, que Mary pode observar o quão fechada ela, e depois Colin, se encontram, encapsulados por seus quereres e seu poder. O que lhes falta é amor. Seja o amor parental, seja o amor de si. Somente quando usam esse poder para abrir espaços (a passagem secreta para o jardim) é que iniciam um processo de transformação. Tais passagens e espaços já estavam lá, mas eram ocultados pelo tempo e pelas imposições impessoais que lhes foram postas e introjetadas pelas crianças. A lógica que rege a forma como seus pais e seu tio, no trato com as crianças daquela época não é muito diferente da existente até hoje: dar tudo aos filhos para não ter de dar amor.

Coitado! Está muito estragado. Mamãe diz que as duas piores coisas que podem acontecer a uma criança são que ninguém faça nunca o que ela quer, ou que todo mundo faça sempre. E que ela não sabe o que é pior. (Fala de Martha para Mary, página 157)

 

O romance tem forte crítica ao modelo de vida vitoriana inglesa e não à toa se tornou rapidamente um grande sucesso. Ainda que com uma visão romantizada da pobreza, o livro aponta para a questão dos afetos e de como as crianças são pouco preparadas e de forma alguma estimuladas a sentir e experimentá-los. Isto também não mudou muito desde o século XIX.

A relação que se estabelece entre Mary e Colin é também muito interessante. Colin chorava e gritava o tempo todo com os empregados da casa e vivia recluso em seu quarto. Mary só o descobre porque um dia escutou esse choro e foi vasculhar os inúmeros quartos da mansão até que o encontrou. Colin tenta submetê-la como de seu costume, mas ela não se curva e violentamente abre as cortinas pesadas do quarto dele para que a luz do sol entre. Ela passa a visitá-lo furtivamente para conversar e ler para ele e depois assume seus cuidados juntamente com Martha que se torna sua confidente. Ela lhe fala das aventuras que tem vivido com Dickon no jardim deixando-o maravilhado e ambos planejam uma forma de fazer com que Colin possa ir até o jardim secreto sem que ninguém saiba.  Dickon vai mostrando a eles como a poda e o desbaste fazem jogar luz às plantas que antes pareciam mortas. Um processo muito semelhante ao que ocorre na psicanálise com memórias e fantasmas já muito alicerçados e que, quando revisitados, ganham novas nuances e contornos, permitindo que aquilo que foi experienciado de uma certa forma e, por isto, recalcado, possa ser posto a uma nova leitura e interpretação.

Quando Colin decide levantar-se da cadeira de rodas e dar seus primeiros passos está, simbolicamente, sinalizando sua independência em relação às coerções psíquicas às quais foi submetido e se submeteu. Ele havia sido diagnosticado pelo médico da família como portador de uma doença incapacitante que o levaria à morte e passou a acreditar nisto. 

- Ele vai morrer?

- Não sei, nem quero saber – disse ela – Histeria e falta de educação, isso é que é mais da metade do problema dele.

- O que é histeria? perguntou Mary.

- Você vai logo descobrir, se ele tiver um ataque depois disso. Mas pelo menos, desta vez você deu motivo para ele ficar histérico. E eu gostei muito! (a enfermeira fala para Mary após a discussão dela com Colin, página 148).

 

As mudanças não se dão apenas na psique, mas se inscrevem nos corpos. Ao final da história Colin já se sustenta sobre as pernas e decide disputar uma corrida com Dickon e Mary e é dessa forma que se dá o encontro dele com o pai que o vê agora como um garoto saudável. Mary da mesma forma também produz mudanças no corpo a partir do momento em que começa a passear pelo jardim e faz longas caminhadas e trabalha na jardinagem. Passa a se alimentar melhor, tomar sol e o resultado é que começa a engordar (era muito magrinha) e se fortalecer, além de ficar corada e com aspecto mais saudável.

Os poucos livros que lera e de que gostara eram histórias de fadas, e em algumas dessas histórias havia jardins secretos. Às vezes alguém dormia neles por cem anos, o que ela achava que devia ser muito bobo. Não tinha a menor intenção de dormir. Pra falar a verdade, cada dia que passava em Misselthwaite ela se sentia mais acordada. Estava começando a gostar de ficar lá fora, não detestava mais o vento, até gostava. Conseguia correr muito mais rápido, por muito mais tempo, e pulava corda até cem. Os bulbos no jardim secreto deviam estar espantados. Em volta deles os espaços estavam ficando tão limpinhos que eles podiam respirar à vontade. E a menina Mary não sabia, mas lá embaixo da terra escura eles estavam na maior animação, trabalhando muito. O sol agora conseguia chegar até eles, aquecendo bem, e quando a chuva caía, logo encostava neles, que começaram a se sentir muito cheios de vida. (página 79)

 

O jardim da mansão era secreto porque estava proibido a todos por ordem do tio (Sr. Craven), pois ele era o local preferido de sua esposa, mãe de Colin, que morreu logo após seu nascimento. A lembrança dela era dolorosa para ele. Mary encontra a chave da porta do jardim que era escondida por uma enorme trepadeira, com a ajuda de um tordo que a guia até o local onde ela vê o brilho da chave à luz do sol. A chave já estava lá, mas ninguém a encontrava.

Da mesma forma, o jardim secreto de Mary, assim como de cada um de nós está oculto por plantas que ficaram muito tempo sem serem revisitadas e podadas para que a luz pudesse entrar. Muitas vezes é mais fácil, no momento, enterrar as lembranças e jogar fora a chave.

Enquanto Colin se trancava no quarto, pensando em seus pavores e fraquezas, em como detestava as pessoas que o olhavam, e passando horas refletindo sobre caroços, corcundas e morte prematura, era um pequeno hipocondríaco histérico e meio maluco que não sabia nada do sol e da primavera, nem sabia que podia ficar bom e se levantar se quisesse. Quando pensamentos novos e bonitos começaram a expulsar os velhos e horríveis, a vida começou a voltar para ele, seu sangue correu sadio nas veias, e a força fluía nele como uma enchente. Sua experiência científica era muito prática e simples, sem nada demais. Podem acontecer coisas muito mais surpreendentes a qualquer um que, quando lhe vem à mente algo desagradável ou desanimador, tem o bom senso de se lembrar a tempo, empurrar essa ideia para longe e botar no lugar, com determinação, alguma outra alegre e corajosa. Duas coisas não podem ocupar o mesmo lugar (página 239).

 

Ainda que a forma como Burnett pense o tratamento da histeria e da condição de um garoto como Colin possa parecer por demasiado simplista hoje, é preciso lembrar que em 1911 a psicanálise estava engatinhando e o estudos sobre a histeria e outros transtornos da mente ainda eram muito obscuros. No entanto, é notável que as metáforas estabelecidas por ela apontem para a relação do estado psíquico com sua manifestação corpórea e com as condições exteriores. O desabrochar das crianças coincide com a passagem do inverno à primavera e a chegada da luz do sol que promove transformações na paisagem da mesma forma que as relações entre as personagens com os outros e com elas mesmas vão sendo mudadas conforme vão se abrindo para o novo.

O Jardim Secreto é uma obra muito interessante e o fato de minha filha ter pedido para fazer uma segunda leitura sozinha, bem como ter se interessado pelo livro de colorir, demonstra que algo na história a capturou e a fez pensar em si mesma. E não é para isto que as histórias são feitas?

 

 

Referências

BURNETT, Frances Hodgson. O Jardim Secreto, Editora 34, São Paulo, 2010

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