Maturana e os restos mortais das estruturas de aprendizagem. O caso da minha musicalidade.

 


Hoje foi minha primeira apresentação pública com o violão. Após um hiato de 45 anos eu decidi estudar música.

A primeira tentativa foi aos 9 anos num conservatório no interior de São Paulo com um tiozinho que suava muito e ficava só querendo me ensinar mínimas e semínimas. Achei aquilo muito difícil e um saco. Portanto, entendi que aquilo não era para mim. 

De lá para cá eu vinha tentando deixar da música, mas a música não deixava de mim. Na adolescência eu comprei uma bateria enorme com o primeiro salário que ganhei como office-boy e comecei a treinar em casa sem nenhum método. Alguns amigos tocavam outros instrumentos e começamos a tocar juntos. Bem tocar não é bem o termo. A gente fazia barulho.

Certa vez uns amigos do trabalho do meu irmão me chamaram para tocar, foi meio que um teste e comecei a tocar com eles. Gente mais séria que construía repertório e se apresentava vez ou outra. Mas eu já havia me tornado professor e meu tempo era muito reduzido e além disso eu nunca gostei de estudar, por isso a coisa não rolou e fui substituído. Vendo minha bateria e minha Vespa para comprar um carro para trabalhar, a Heleninha Hoitman. Um Chevette vermelho à álcool que bebia como a personagem da novela. 

Mais tarde, quando já dava aulas no cursinho pré vestibular, havia alguns professores que tocavam pagode e eu comprei um tamborim e um bongô e comecei a tocar com eles nas festas. Durou pouco, nem gosto de pagode.

Aí me mudei para a Bahia e ganhei uma zabumba do meu cunhado. Numa festa que fizemos na escola comunitária que criamos eu comecei a tocar e o pessoal curtiu. Daí pra frente, sempre que possível eu me metia no meio dos forrozeiros na universidade pra tocar um pouquinho.

Veio a pandemia e minha filha começou a fazer aulas de teclado virtuais. Não se empolgou muito e parou uns seis meses depois. Sobraram algumas aulas já pagas e decidi usá-las para ver se algo havia mudado entre eu e a música.

Na primeira aula o Jucélio, professor da escola de música e da escola das minhas filhas, me ensinou dois acordes (Em e A5) que usam só dois dedos e são muito simples. Me ensinou a batida (que aprendo com facilidade por causa da bateria) e disse que a música era só isso. Perguntei qual era a música e ele disse: - Essa aqui. E me entregou as cifras e letra de uma música do America chamada “A Horse With no Name”. Eu disse: - Ah, conheço essa, E comecei a tocar e cantar. Ele ficou surpreso e eu também. 

Daí em diante eu tenho dedicado parte do meu tempo ao aprendizado do violão e da música e mês passado terminei o módulo 1. 

Fico intrigado em ver como um professor pode fazer muita diferença na vida de alguém.

Fiz licenciatura em Geografia e nunca ninguém me alertou que eu devia pensar sobre meu trabalho docente, pois havia um risco de eu matar alguém. Em geral se diz isso aos médicos, enfermeiros, psicólogos e gente da saúde em geral. Mas a verdade é que professor também mata.

O Kazumi, que me deu aula de Matemática na 5ª série matou meu pensamento matemático que até então ia muito bem. Ele mal falava português e eu, recém chegado de outro estado, não tinha visto nada daquilo que ele estava ensinando, um tal de número elevado ao quadrado. Dalí para a frente nada mais eu aprendi. Só fui compreender o que era um número elevado ao quadrado no curso de Filosofia (depois do mestrado) quando tive que fazer um seminário sobre um texto do Platão (Teeteto) e aí percebi que havia de fato um quadrado (a figura geométrica). Porém algo sobrou da matemática morta para mim, meu pensamento lógico.

O tiozinho suarento matou minha possibilidade de aprender música, mas algo sobrou, minha musicalidade.

Reconheço músicas no primeiro acorde. Acompanho o ritmo e a batida de qualquer uma delas.

Algo inato? Não creio. Claro que todos nós temos estruturas que permitem o desenvolvimento de linguagens e a música é uma forma de linguagem, mas há a questão dos estímulos e da exposição que se tem a fenômenos que despertam essas estruturas e as fazem trabalhar.

Mas o papel crucial para esse desencadeamento é do professor.

Se ele se ocupa em ensinar aquilo que acha que sabe, como se fosse uma transmissão de conhecimento, a tendência é que tudo caia por terra. 



Humberto Maturana
Humberto Maturana

Nelson Vaz


Ensinar é impossível, aprender é inevitável.


Essa frase é a forma que Nelson Vaz, um imunologista com quem tenho o privilégio de conviver num coletivo de trabalho da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo onde faço meu pós-doutorado, resume as ideias de Humberto Maturana, com quem trabalhou, sobre a Biologia do Conhecer.

Quando ouví esta frase dele foi como se houvesse acontecido uma síntese perfeita de tudo que eu pensava sobre educação desde que iniciei meu trabalho docente há quase quarenta anos.

De fato nunca achei que ensinei algo a alguém, as pessoas aprenderam porque quiseram, porque estavam dispostas. Tudo que consegui, quando consegui, foi provocar as estruturas dessas pessoas de uma forma que as fizesse olhar para aquilo que eu chamava sua atenção. Costumo dizer que cutucamos os lugares certos quando essas pessoas começam a caminharem sozinhas, ou seja, elas aprendem.

O que Maturana diz é que de fato o sujeito só aprende quando quer e que tudo depende da forma como o professor conduz uma aula para que uma emoção se instaure nela, o amor. Amor para Maturana nada tem a ver com romantismo ou religião, mas com respeito. O amor é quando legitimamos o outro como ser humano, ele diz. Quando reconhecemos o outro como alguém.

Parece simples, mas não é.

O que Jucélio, meu professor de violão, tem de diferente do tiozinho suarento do conservatório? Ele pensa. Pensa nele e nas formas como aprendeu e gosta de música, e pensa em mim, como seu aprendiz. Jucélio poderia ter me “ensinado” uma música de sua igreja, posto que é evangélico e eu provavelmente teria desistido. Mas ele decidiu me dar uma música de rock e isto fez toda a diferença para mim. Assim como ele decidiu iniciar os estudos por acordes simples, para que eu, um marmanjo, sentisse que poderia aprender algo logo no começo e isto me estimulasse a continuar. Jucélio pensa seu papel como professor, como estimulador e animador (essa é a palavra que Maturana usa) do processo educativo.

O tiozinho suarento já deve ter morrido, assim como o Kazumi, mas fico pensando quantos meninas e meninas elas não mataram junto comigo.

José Pacheco, educador português que também tenho a felicidade de encontrar volta e meia na Cátedra, diz que nos tornamos professores por uma de duas razões. Por amor ou por vingança. Claramente estou na segunda opção. Tudo que faço é marretar o edifício da academia e das escolas e universidades por onde passo para tentar abalar seus alicerces. O problema é a raiz profunda do que se pensa como educação, mas é somente ensino.

Alunos em séries etárias, aulas de 50 minutos, disciplinas herméticas com conteúdos ditados por catedráticos, fileiras de cadeiras que obrigam os alunos a olharem a nuca do colega da frente, o lugar de destaque para o professor o “possuidor do saber”, aulas em que os estudantes não podem se mexer ou conversar, aulas e cursos inteiros baseados apenas em textos escritos sem nenhuma possibilidade de diversificação de gênero textual, avaliações não condizentes com o planejamento dos cursos, cultura de provas que nada provam a não ser a capacidade de alguns alunos em repetir o que o professor disse, estímulo da competição por notas entre os alunos, bullying, sarcasmo e tantos outros problemas que levam a um adoecimento mental generalizado de alunos e professores.

Eu só poderia me vingar dos professores que tive. Poucos escapam dessa lista.

Vi muitos alunos morrerem enquanto eu prosseguia. Sou um sobrevivente do sistema educacional brasileiro da ditadura militar. Alguns tomavam reguadas, outros ficavam de castigo atrás da porta com os braços levantados (como eu fiquei), outros eram escorraçados por professores que despejavam sobre eles suas próprias infelicidades e fraquezas.

Não pode haver amor num sistema assim. Não foi feito para humanizar, mas para mecanizar. Trata-se de uma grande linha de produção de autômatos idiotizados e docilizados para aceitarem trabalhar horas a fio nas máquinas da indústria. É para isto que o sistema prussiano de educação foi encomendado aos iluministas. E é por isso que a Revolução Francesa tornou a educação obrigatória. Nada que é bom pode ser obrigatório.

As escolas se tornaram intolerantes ao erro, quando deveriam ser o lugar da livre experimentação, são reprodutoras e criadoras de desigualdades. O erro é uma peça chave para entender o pensamento de Maturana sobre a educação. Para ele, o erro é uma espécie de cegueira. Quando o sujeito erra ele acha que está acertando, pois há algo que está presente, mas que ele não está vendo e isto faz com que tome decisões ruins e ele perceba, depois, que errou. É diferente de uma mentira, diz Maturana, que ocorre no presente, ou seja, o sujeito decide mentir no aqui, agora.

O erro acontece, portanto, diz o autor, porque o sujeito toma decisões a partir de seu nicho, seu lugar. A partir do que conhece. Por vezes, porém, esse universo de conhecimento é limitado, ou o sujeito é incapaz de olhar as coisas por outra perspectiva, já que essas outras formas de olhar não fazem parte de seu nicho. É aí que entra o papel do que ele chama “observador”. Um observador é alguém que está em outro nicho e que entende o mundo a partir dele. Ele vê coisas que o sujeito desse nicho não vê e pode alertar para os erros ou pontos cegos. O problema todo da educação é como fazer isto sem que o sujeito ache que o observador é que está cego ou é um idiota.

Como fazer bolsonaristas entenderem que não é compatível uma intervenção militar com a democracia, por exemplo, ou marxistas ortodoxos compreenderem que é impossível conscientizar alguém de alguma coisa, como classe social, por exemplo. Lamentavelmente, o diálogo entre esses polos se tornou inalcançável nos últimos tempos.

Não há como ser observador se você se coloca em um polo antagônico ao sujeito que quer alertar. Não há diálogo possível nessa circunstância. É preciso ser um escutador sensível, perceber o ambiente, a cultura e a filosofia de vida do outro, conforme sustenta René Barbier. Tentar impor sua vontade, seus gostos, seus temas, seus conteúdos, é desconsiderar o outro como sujeito, como ser humano. É desamor.

Quando dava aulas para o que hoje se chama Ensino Fundamental, percebia a curiosidade e vivacidade dos alunos frente às descobertas. Eles queriam saber tudo, explicar tudo, falar deles e de suas aprendizagens. Eles me adoravam por que eu deixava. Nas vezes em que tentei impor minha vontade tudo desandou. Aprendi com isso.

Ao pega-los na universidade vejo que algo neles morreu. Raramente há um ou outro curioso empolgado com alguma coisa que você disse. É preciso todo um processo de ressuscitação para traze-los de volta. Alguns não resistem.

Tento falar na linguagem deles, me interesso pelo que está na moda (séries, filmes, animes, TikTok, Instagram, etc.), conduzo-os por labirintos de pensamento até que se sintam perdidos. Acima de tudo, faço muitas perguntas. Para a maioria delas eu não tenho respostas. A boa pergunta abre um buraco nas certezas. Certezas paralisam, dúvidas é que fazem andar.

Tenho termômetros para medir se está funcionando. Não faço chamada e não dou nota e eles sabem disso. Estão dispensados da aula no primeiro dia. Se começarem a faltar muito eu já sei que algo estou fazendo errado. Alguns deles ganharam computadores no início da UFSB, onde leciono. Se percebo que olham para mim acima da tela do computador, sei que fiz ou disse algo certo que chamou a atenção deles. Quando ouço a voz de alguém que nunca falou na minha aula, sei que estou tocando em questões profundas e que mexi com alguns deles.

Essa balizas são os meu sinalizadores que guiam a navegação da aula. Assim como um prático que atraca navios enormes em portos estreitos, é preciso conhecer as águas, mas lembrar que cada navio se posicionará de uma forma.

Da mesma forma, meu trabalho na clínica psicanalítica necessita de uma escuta atenta e sensível, mas que busca elementos que não são ditos ou, se são ditos o são à revelia da consciência do sujeito. Aquilo que Lacan chamou de Significantes. Algo que brota do insconsciente e que é endereçado a mim como analista. Sutilezas, que ao leigo parecem apenas humor, risadas, palavras ditas sem querer, expressões equivocadas. Para o analista são balizas, são vazamentos de algo que tenta escapar ao controle do sujeito.

É evidente que não é preciso ser psicanalista para ser professor, contudo é imprescindível a mesma atenção às sutilezas. O mesmo amor e cuidado com o outro.

E você? Quais suas balizas no trato com o outro?

Quais termômetros você tem?

Como e quando ocupa o lugar de observador?

Como lida com aquele tio da família que foi para a frente do Tiro de Guerra marchar enrolado na bandeira ou o primo barbudo que mora numa comunidade alternativa e tem uma companheira, mas é sustentado pelo pai?

Que emoção você leva para sua sala de aula ou para seu trabalho?

O que morreu em você que ainda é possível ressuscitar?


Comentários

  1. Ótimo texto. Quanto a última pergunta, uma análise longa que muitas vezes(quase sempre) é mais fácil sobrevoar

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