Jam Tomorrow: esquizofrenia e paranoia em “As linhas tortas de Deus”



 O filme “As linhas toratas de Deus” (Oriol Paulo- direção; Oriol Paulo, Guillem Clua e Lara Sandin – Roteiro, 2022), disponível na plataforma de streaming Netflix, é baseado no livro homônimo de Torcuato Luca de Tena em 1979.

A história se passa exatamente nesse período em um hospital psiquiátrico que tem como diretor Samuel Alvas (Eduardo Fernández) no qual a paciente Alice Gould Almenara (Bárbara Lennie) se interna voluntariamente.

Encaminhada pelo médico Donadio (Joan Crosas) por meio de uma carta que asseverava a gravidade de seu quadro de paranoia dizendo tratar-se de alguém perigosa para os outros e para si mesma. A cena inicial é ela se despedindo de um senhor (que depois descobrimos ser o próprio médico) e indo a pé para dentro do hospital.

Ela é entrevistada por um psiquiatra (Teodoro – Federico Aguado) que reconhece tais traços de paranoia nela e anota isto em seu caderno.  Durante a entrevista, Alice diz estar sendo vítima de um sequestro legal, ou seja, está sendo declarada incapaz para que seu marido possa administrar sua fortuna. Ela acusada de tentar envenenar o marido, mas alega que foi ele quem tentou envenená-la. 

A entrevista é interrompida pela entrada de uma outra psiquiatra, Montserrat Castell (Loreto Mauleón) que a conduz até as dependências internas do hospital e seus exames de admissão. Quando ela tem de deixar seus pertences, joias, cigarros e livros, na portaria, Alice pede para ficar com ao menos um livro e a médica diz para ela escolher um. Os dois títulos que aparecem são: “Alice através e espelho” de Lewis Caroll e “Síndromes e tipos de paranoia” de Arthur Hill. Ela decide ficar com o segundo.

No desenrolar da história dentro do hospital psiquiátrico, ela vai sustentando ter se infiltrado dentro dele para investigar um crime que teria ocorrido e é então que cenas desse suposto crime começam a ser apresentadas entrecortando o cotidiano do hospício.

O que é interessante aí, é que o livro que Alice escolhe levar para dentro do hospício esconde supostas provas ou indícios desse crime que ela retira de entre as folhas, mas além disso parece ser também uma tentativa dela de disfarçar bem o quadro de paranoia. Ao menos é assim que se pode entender nesse começo da história.

O livro que ela deixou na portaria, “Alice através do espelho” é um clássico que configura-se uma continuação de “Alice no país das maravilhas” (também de Caroll) e que fez mais sucesso do que o primeiro livro, desencadeando todo o processo de fama do autor e a chegada de ambos em diversas versões do cinema, tornando-se ícones da cultura pop. Enquanto em Alice no país das maravilhas a personagem  entra por uma toca de coelho e se vê às voltas com seu tamanho “inadequado” e que deve ser “regulado” para que ela caiba no mundo mágico do país das maravilhas, no segundo (Alice através do espelho) ela entra na aventura ao tocar um espelho e passar por ele, deparando-se com um mundo no qual tudo é ao contrário. Assim, é preciso correr para ficar parado e quanto mais se foge de alguma coisa, mais se aproxima dela. Nessa continuação ela deverá lidar com a questão do tempo e espaço. Nele, o tempo corre de trás para frente e é uma imagem refletida do primeiro livro. Enquanto o primeiro se passa no calor da primavera (4 de maio), o segundo situa-se no outono frio e escuro (4 de novembro), ao invés de cartas, o jogo agora é de xadrez, um jogo de estratégia.

Uma das questões acerca do tempo está lindamente representada por uma passagem que Carroll cria um neologismo que acabou sendo incorporado na língua inglesa. Na disputa de xadrez a Rainha Branca negocia com Alice seu pagamento

uma das formas seria “geleia dia sim, dia não”. Ao Alice responder que não quer geleia hoje, a rainha contrapõe dizendo que ela não poderia ter geleia hoje nem se quisesse, pois a geleia ficará sempre para amanhã. 

 

Isso causa confusão tanto em Alice quanto nos leitores, uma vez que amanhã, eventualmente se tornará hoje em algum momento. Mas a Rainha Branca apenas explica que a geleia será sempre para amanhã. Há uma referência ao latim, já que a palavra “iam” ou “jam” (geleia, em inglês) significa “agora”, no sentido de “já ter acontecido”, diferentemente do “agora” que se refere ao presente, expressado no latim com a palavra “nunc”. Desta forma, “jam” nunca se refere ao presente e, portanto, nunca estará disponível hoje. (DARK BLOG, 2021)

 

É daí que Carroll cria a expressão Jam Tomorrow, expressão que traz aquela ideia de algo agradável que nunca se realizará. No Brasil é comum os pais usarem a expressão “na volta a gente compra” quando não querem satisfazer algum pedido de seus filhos. Algo semelhante.

 

Bem, mas o que isso tem a ver com o filme em questão?

A maneira com que a obra é composta, coloca sempre em dúvida se a protagonista é ou não uma paranóica afinal. A carta do Dr. Donadio alertava que ela tinha sempre respostas prontas a dar e que mentia compulsivamente mesmo quando confrontada com suas mentiras desmascaradas. Ela torcia os fatos e evidências para conseguir seduzir os médicos de que ela dizia a verdade.

A um só tempo, as cenas entrecortadas da noite do suposto assassinato que ela teria ido investigar eram acrescidas de elementos que iam modificando o entendimento do episódio. Por exemplo o trecho em que ela assume o papel de uma legista que teria ido examinar o cadáver do assassinado. 

Contudo ela vai sendo pressionada a enfrentar situações que contestam suas alegações como a morte do anão que havia tentado estuprá-la e a visita do Sr. Olmo (Joan Crosas num segundo papel) que teria sido o pai do morto que a contratou para investigar o assassinato. 

Até o ponto em que ela é obrigada a se confrontar com a realidade. Isto ocorre quando ela cria um plano de fuga do hospital e consegue a participação dos internos. Seu plano era exatamente a reprodução das cenas que, pensávamos, estavam no passado, no dia do assassinato do filho de Olmo.  Porém elas ainda não ocorreram, a não ser na cabeça de Alice. 

Ela se dá conta disso quando está prestes a sair pelo portão da rua, mas olha para a frente, a liberdade e nada vê. Apenas a escuridão. Como se não encontrasse perspectiva em sua vida fora do hospital. Ela então decide voltar e atacar a legista que acabara de entrar com seu carro, assumindo seu lugar na investigação do assassinato que, agora ela sabe, foi ela quem provocou com seu plano de fuga.

Quanto mais tenta fugir, mais perto fica de seu transtorno.

Ela de fato faz a perícia médica no corpo e revela o assassino que é preso. Com o apoio dos médicos que ela cativa e manipula, coloca em xeque a posição do diretor do hospital. Nem foi difícil convencer os médicos que o diretor deveria ser afastado do cargo, pois eles já o odiavam.

A habilidade de Alice em fazer com que o outro se afeiçoe a ela de alguma forma é a porta de entrada para sua manipulação posterior. Ela estabelece vínculos que não passam apenas pelo discurso. Ora beiram a sensualidade, ora a confiança e a compreensão da condição de cada um.

 

Entre a paranoia e a esquizofrenia

O que chama atenção no filme é o fato de que, a um só tempo, Alice sabe que tem um transtorno e dessa forma aceita se internar no hospício voluntariamente e decide permanecer nele mesmo podendo fugir, mas por vezes parece não saber que esse transtorno comanda suas ações. Há uma confusão mental que a impede de assumir responsabilidade sobre o que faz na maior parte do tempo. Talvez seja esta a questão fundamental da saúde mental. A distinção entre fantasia e realidade.

De fato, não é uma fronteira fácil de ser definida, posto que vários fatores corroboram para seu estabelecimento. Cultura, escolaridade, laços familiares, doenças pré-existentes e o processo de constituição do sujeito, por exemplo. 

Talvez não se trate efetivamente de uma fronteira como se toma tradicionalmente esse termo. Uma espécie de linha que separa uma coisa da outra. Em termos mais factíveis, temos zonas de transição. Regiões em que se misturam comportamentos e condutas que alternam momentos de lucidez com outros de engajamento na fantasia.

O psicótico não simboliza a castração, pois num processo de foraclusão da função paterna ele ainda não percebe separação entre ele e a mãe (PIRES, 2005), ou seja, o ciclo de constituição do sujeito que passaria pelo processo de castração e o reconhecimento de que ele e a mãe são sujeitos diferentes por meio da função paterna não ocorre como no neurótico. Essa simbolização da separação da mãe por meio da função paterna teria o efeito da inclusão da falta, da castração do Outro e esvaziamento de seu gozo. Por isso há uma ausência de metaforização e, portanto, uma impossibilidade de estabilização do psicótico no discurso (QUINET, 2003).

O sujeito psicótico tem que encontrar alternativas frente a esse caos de indiferenciação da realidade. Dessa forma ele tenta estabelecer uma cisão subjetiva entre ele e o Outro de forma artificial, por exemplo, construindo projeções que imputam ao outro o que ele não dá conta de se responsabilizar. A única possibilidade de metáfora é agora delirante e descolada dos significantes que surge para tentar restabelecer e dar ordem aos sinais sem sentido (CALLIGARIS, 1989).

Por isso, na paranoia, uma das formas da psicose, o delírio auditivo é pungente e forte. O pai, retorna na forma de uma condução a ser seguida pelo sujeito que é constituído, tem nome, se apresenta para o gozo do Outro. Já na esquizofrenia, uma outra forma da psicose, a alucinação é escassa e fraca, não sustentando uma designação do Outro, como na paranoia. São apenas vozes que chegam e o afetam. Em contrapartida há uma abundância de alucinações não auditivas (CALLIGARIS, 1989).

Na esquizofrenia o corpo é despedaçado, é recortado, pois não houve o processo de construção da imagem do corpo no estádio do espelho. Alice encontra a caixinha com o espelho quebrado no filme, o que a faz lembrar que seu corpo é quebrado, assim como sua psique.

Nesse sentido, seja propositadamente ou não, o filme coloca a personagem de Alice num meio termo entre a paranoia e a esquizofrenia, pois se de um lado ela, à maneira de um paranóico, se nomeia e nomeia o Outro na figura do médico que recomenda sua internação e que em sua fantasia personifica-se no pai do garoto cuja morte ela será responsável, de outro ela tem essa personalidade corpo fragmentado que escreve um bilhete para si mesma e deixa no meio do livro, avisando-a de que o assassino do garoto é um esquizofrênico. 

 

É nessa impossibilidade de definir o tempo dos fatos que o filme constrói seu roteiro. O filme se passa no tempo da mente de Alice e não no tempo cronológico, por isso os passos que dá vão dando alicerce para a configuração do evento da morte do rapaz. É como se a história fosse narrada de trás para a frente. Esse é o Jam Tomorrow inserido no roteiro. Um agora que nunca se realiza, posto que é fantasia.

Um filme que vale a pena ser visto e discutido.

 

Referências

AVENTURAS NA HISTÓRIA - Como termina o livro que inspirou o filme 'As linhas tortas de Deus'?, disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/como-termina-o-livro-que-inspirou-o-filme-linhas-tortas-de-deus.phtml, 10/01/2023

CALLIGARIS, C. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre, RS: Artes Médicas, 1989.

DARK BLOG - Espelhos, xadrez e geleia: as simbologias de Alice através do espelho, disponível em: https://darkside.blog.br/espelhos-xadrez-e-geleia-as-simbologias-de-alice-atraves-do-espelho/, 09/03/2021

HOFFMANN, Felipe - As Linhas Tortas de Deus: Todos os detalhes do filme espanhol que está fazendo sucesso na Netflix, disponível em: https://aodisseia.com/as-linhas-tortas-de-deus-filme-espanhol-netflix/, 09/12/2022

PIRES, Mariana Lorentz - Diferencial entre Esquizofrenia e Paranoia, Porto Alegre, Universidade Federal do rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, 2005.

QUINET, A.  Teoria e clínica da psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003

 

 

 

Comentários

  1. Assisti fiquei um pouco perdido mas entendi lendo este texto.

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  2. Excelente texto! Gratidão por compartilhar! Nenhuma referência ou resenha que encontrei na internet quando assisti ao filme foram tão esclarecedoras.

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